Desenvolvimento
Afetivo, como nos tornamos humanos – Parte V
A ausência de afeto no início da vida traz
um dano permanente. O alimento afeto deve ser doado de forma regular, com
pequenas variações na frequência e na intensidade, pela pessoa preferencial
para o bebê. Esta preferência é facilitada e promovida pelo reconhecimento do
cheiro, da voz, do tônus ao segurar o bebê. A repetição destes dados trará para
o bebê a segurança e confiança nesta pessoa preferencial. Como a mãe tem o
privilégio da conexão visceral, esta condição é facilitadora para a dupla
mãe-bebê. Mas, no caso da substituição materna, o bebê tem uma boa tolerância
para refazer esta conexão, carregando sua expectativa da sua demanda de
satisfação do colo, enquanto cuidados de sobrevivência,
nutrição/higiene/sono/afeto, e a mãe substituta terá este espaço, podendo
construir um vínculo materno genuíno. A tese da ligação biológica tem sua
importância quando ela for continuada, mas não é impossível a realização desta
substituição. Isto ocorre com as crianças que são adotadas sem que haja um
abrigamento que quebre este provimento de afeto. Ou seja, crianças que têm seu
vínculo víscero-afetivo materno rompido e que vão para um abrigo por meses ou
anos. Quanto maior for o tempo de uma criança no sistema de abrigo, sem uma
relação afetiva materna, maior será o dano do desenvolvimento afetivo. A
possibilidade de ser capacitada para confiar no outro, e se comportar como
humano, é diretamente proporcional ao afeto regular recebido sem interrupção.
É preciso entender o que significa a
carência afetiva, esta condição que aprisiona o indivíduo na busca incessante
de relações de dependência. A carência não corresponde à ausência completa ou
parcial de afeto. Por vezes há um descompasso entre o afeto ofertado e como é
sentido este afeto pelo bebê. Assim, mesmo sendo alimentado afetivamente, por
alguma razão, o bebê não é satisfeito em sua necessidade particular de afeto.
Dependências. O afeto, ou melhor, o
não-afeto, em qualquer grau, é um fator preponderante para os comportamentos de
dependências diversas. Dependência afetiva, dependência química, passando pela
dependência alimentar, a busca pelo afeto não alcançado leva a se submeter a
relações abusivas, leva à busca da ilusão do prazer imediato, leva à sensação
do conforto compulsivo no estômago. Estes comportamentos aparecem, socialmente,
na juventude. Mas, o início de todos estes distúrbios de expressão por
dependências reside na infância. É a ausência ou a precariedade, por
intermitência, por instabilidade, ou por frieza e distanciamento, que desvia ou
corrompe a possibilidade de um saudável desenvolvimento afetivo.
Se a desconfiança afetiva pela
instabilidade dos cuidados impede a confiança na construção de relações
saudáveis, numa tormenta sem fim, o aniquilamento afetivo, resultado de afetos oriundos
de violências, pode vir acompanhado de perversidade, de crueldade, mantendo o
ciclo da repetição quase compulsória.
O comportamento da imitação, por exemplo,
faz parte dos processos de identificações, que trazem o conforto subjetivo da
sensação de pertencimento. A pertinência a um grupo acalma a angústia de
desamparo. Esta rede, abandono, desamparo, solidão, versus proteção, força,
passa a fornecer uma garantia quando o estresse ameaça a mente. O funcionamento
afetivo é muito dinâmico, sempre mistura várias emoções, até mesmo
contraditórias, ganhando sentido, muitas vezes durante o percurso de cada
experiência afetiva.
Entenda-se que, o alimento da geladeira
para os obesos é a representação do afeto não recebido. Assim como a cocaína ou
o álcool, ou as escolhas sucessivas de relações abusivas, também simbolizam o
afeto que faltou ou foi agressivo. É preciso, pois, compreender que o afeto não
saudável produzirá uma lacuna que fomentará uma busca incessante pelo nutriente
afeto, deslocado, então, para novos objetos simbólicos.
O conceito de saudável relativo ao afeto
refere-se à adequação de necessidade x satisfação de saldo positivo. Ou seja,
que a soma de acertos de satisfação seja bem maior que a soma de erros e
frustrações, que, claro, existirão sempre. Não há problema em errar ou frustrar
um bebê em sua demanda de afeto, caracteristicamente, de pedido imediato. O
intervalo de tempo entre o pedido e a satisfação também ensina o esperar, tão
importante para seu desenvolvimento. Também o equívoco na resposta materna pode
ser um aprendizado de tolerância, essencial para a vida toda.
No entanto, o problema dos efeitos
nefastos das alterações do desenvolvimento afetivo está não só no abandono que
é a expressão da ausência afetiva, mas, na presença de afetos agressivos
continuados por muito tempo da infância. Afetos mal tratantes, afetos de
violência física, sexual e psicológica, que imprimirão uma tatuagem na alma da
criança, levando-a à condição de submissão nas relações com o outro. Há ainda a
pior das possibilidades: a impossibilidade de se humanizar. Estas crianças,
gravemente marcadas por afetos de violência, não serão obstruídas na sua
aquisição da capacidade de empatia.
Não conseguirão viver a cidadania, a solidariedade e a compaixão, até mesmo por
aqueles que ela venha a prejudicar.
“Se, ninguém sentiu compaixão por mim quando
eu era criança e precisava de proteção, ninguém merece minha compaixão”.
Abordaremos ainda este tema em suas
consequências e patologias na próxima semana.
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