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Criança e as Pandemias – Parte I
São muitas as pandemias. O novo corona-vírus
está emprestando a dimensão do termo “pandemia”. Mas, esta denominação não se
restringe à covid-19. Temos várias pandemias não declaradas por nenhum órgão
internacional. Seu caráter pandêmico fica sempre mitigado pela própria
sociedade, por grupos que as defendem em troca de Poder. Temos a pandemia de
preconceitos, a pandemia do racismo, a pandemia da violência, a pandemia de
violência contra mulheres e crianças, a pandemia da pedofilia. Leis não faltam,
mas transgressões também não.
Somos uma Sociedade Cenográfica. O papelão
é material muito usado para fazer de conta que há limites entre sistemas que,
na essência e na efetividade, são fictícios. E seguimos fazendo de conta. Somos
responsáveis por todas as vítimas de todas estas pandemias, em ação e omissão.
Este tipo de “Estado” é muito danoso para
a formação das crianças e adolescentes. Se já é difícil tecer o esboço do
necessário código moral, construindo regras éticas, para ingressar,
saudavelmente, na vida em grupo, com princípios humanizados, certamente, se torna
impossível esta construção com o relativismo, o direito a privilégios ou a
punições arbitrárias no oscilante “faz de conta” reinante.
Não é difícil visualizar os efeitos do
isolamento pela pandemia da covid-19 para uma criança. A pergunta que se
repete, quando vai acabar esse vírus, que segue sem resposta daqueles adultos
em quem depositava a confiança do “saber tudo”. Talvez, esteja sendo o primeiro
choque de realidade do tamanho destes adultos. Estão aprendendo que eles sabem
quase tudo. A agitação motora que só cede quando entra o joguinho eletrônico. E
daí deste espaço virtual não sai mais. A convivência exaustiva com os pais, o
que nunca fez parte de sua experiência anterior.
Assim como o planejamento da
flexibilização é programado em fases sob critérios de medição, também as
crianças passam por fases durante o isolamento. Uma primeira fase foi a
“delícia” de ter pai e mãe por 24 horas, 7 dias por semana, desobrigadas de ir
à escola. Mas esta anormalidade, aparentemente deliciosa, tem um prazo de
validade. A ausência da escola, até então comemorada, surge como uma falta
insubstituível, falta da sala de aula, da professora, do recreio, falta da
rotina, falta de toda a atividade escolar. As conversas com os amigos, mesmo
que pareçam monossilábicas, mas se esbarrando. O mundo virtual não preenche
este mundo real, mas oferece uma saída para um mundo paralelo. Enganoso, mas
ofuscante, e de resposta imediata.
No entanto a criança necessita mais
precisamente da sua própria fantasia. De cria-la, de viajar nela e de sair dela
quando decide. O mundo virtual dos joguinhos lhe oferece uma “fantasia” pronta,
mas que tem vida própria. Não lhe satisfaz em suas necessidades de
desenvolvimento. A velocidade de resposta digital não é suficiente, apesar de
ser aprisionadora. A pandemia do vírus empobreceu a saúde física e mental das
crianças, empobreceu a construção da vida afetiva delas.
A desordem se instalou dentro das células
sociais, as famílias. E com ela, as alterações do curso do desenvolvimento.
Crianças expostas aos temas de adultos, com os humores alterados pela vivência
do forte sentimento de impotência, regado a medo. Mas, antes, durante e depois,
a pandemia dos preconceitos. Temos muita dificuldade de conviver com diferenças
e diferentes. Eles nos ameaçam porque nos fazem sair da famosa zona de
conforto. Se não é igual, não sabemos como é, e temos medo da aproximação.
Qualquer traço do perfil do outro pode gerar um preconceito que deixa como
saldo a falsa sensação de que, por um atalho, chegamos à conclusão sobre aquela
diferença. O preconceito é a expressão da fixação numa fase do desenvolvimento
cognitivo em que a criança só raciocina com uma única variável. E, por isto,
ela incorre em erro. Esta é uma pandemia que dá lugar a outra, que hoje grita
por todos os cantos do mundo: a pandemia do racismo.
Uma criança pequena, quando perguntada o
que está vendo numa foto de duas crianças abraçadas, fala “um menino e uma
menina abraçados”, sem se referir a cor da pele deles. Mas, o racismo
estruturado traz para ela o adjetivo da cor da pele, que caminha no sentido de
se tornar o sujeito da frase. No mundo adulto ela aprende desde cedo a
diferenciar a cor da pele das pessoas e pela cor lhe atribuir adjetivos plenos
de preconceitos.
Vivemos agora, mundialmente, uma primeira
reação consistente da sociedade que questiona esta condição estrutural do
racismo. A pandemia do vírus não foi capaz de deter a indignação das pessoas. E
os protestos desafiaram o vírus. Mas, se as pessoas foram capazes de se
levantar contra uma imagem de opressão racista explícita que mata, entre nós,
não conseguimos reclamar do adolescente que também morreu de opressão racista
explícita. O joelho ou o fuzil, mas a naturalização deste tipo de conduta já é
estrutural em quase todos.
A pandemia da violência contra a mulher é
responsável pela opressão e morte de muitas. O Feminicídio e seus índices
galopantes. Não adianta ter uma lei, Lei Maria da Penha, específica e competente,
se não temos Políticas Públicas consistentes e consequentes. Falta a educação
do respeito e da empatia. O desejo de Poder absoluto destrói as palavras que
deveriam preencher os lugares interpessoais. E, como crianças, que ainda não
adquiriram um esboço de código moral, de código legal, vemos adultos agredindo,
violentando e matando mulheres, na maioria das vezes dentro de casa, portanto
na frente das crianças. Este é um comportamento que ensina para as crianças
testemunhas a violência e a submissão, ambas nocivas à vida em grupo.
Neste caldo sombrio, temos a pandemia do
egoísmo. Não há coletivo, Valoríza-se o narcisismo, antes de tudo. Crianças que
não aprendem a pensar e sentir no coletivo, não são capacitadas para a empatia
e para a cidadania. E mais, não serão líderes. Só conseguirão ser “chefes”
porque se acostumaram ao egoísmo e ao eixo dominador x dominado, opressor x
oprimido. Uma sociedade sem líderes é uma sociedade pobre de humanidade.
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