BERNARDOS,
O E.C.A., A CARTA MAGNA, TODOS NÓS.
Estamos no tempo midiático da perplexidade
e da indignação diante dos fatos que serraram a vida deste menino de 11 anos.
Ele, mesmo muito criança ainda para dimensionar o horror de mentes perversas,
percorreu todos os lugares, todas as promessas de proteção à integridade
física, psicológica e moral de uma criança. Todas, portas enganosas e
frustrantes que o devolviam para o sofrimento cotidiano. Todos sabiam. Mas,
ninguém foi capaz de ter empatia e dar crédito a seu repetido pedido de
sobrevivência.
Para Bernardo, a fila andou, chegou a sua vez,
antes já houve a Joana, também abandonada pela inversão de guarda, antes a
Isabela jogada pela janela, e antes dela outros que minha memória rejeita
guardar, mas que a lembrança do horror causado, nunca me deixou. Crime de lesa
criança. Crime de lesa a Pátria do amanhã.
Escrevemos, lindamente, no Estatuto da
Criança e do Adolescente, art. 3º, art.4º, art.5º, art.7º, e na Constituição
art. 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado zelar pela
integridade da criança e do adolescente e pela garantia dos direitos
fundamentais. Se, de novo retomamos este tema, é porque a Lei continua sendo
pouco cumprida, e a sociedade só se horroriza quando uma atrocidade chega à
mídia, mas trata como fato isolado, logo esquecendo. Nosso judiaciário falha
monotonamente. São as crianças que são punidas, que estão cada vez mais
isoladas em seu sofrimento perpetrado por adultos perversos. Não há resiliência
psicológica possível para uma criança viver como um saco de pancada ou um
escravo sexual de um adulto perverso. É a prática da tortura doméstica mantida
pelo medo, que acontece nos porões dos lares, executada sob o manto da imagem
de família normal.
A Via-Crúcis de Bernardo é emblemática
para constatarmos o enorme fosso entre a Letra da Lei e a realidade do
sofrimento de crianças e adolescentes que necessitam de proteção contra ataques
dos adultos de quem dependem. As evidências, no caso de Bernardo, são inegáveis,
mas de nada adiantaram. Protegendo quem não lhe protegia, ele, com reserva e
guardando uma parte do segredo, buscou uma solução para seu sofrimento no
espaço intrafamiliar, no nuclear e no extensivo, no social junto ao casal
substituto de figuras parentais, no Conselho Tutelar, até mesmo por conta
própria, indo sozinho à Promotoria de Direitos de Crianças e Adolescentes, na
Audiência da Vara da Infância e Adolescência. Não foi escutado. Foi neste
momento que foi acolhido, ingenuamente, o compromisso do seu pai, – título --, de
melhorar as relações afetivas, uma segunda chance, compromisso creditado pelo
Juiz, que determinou 90 dias para uma reavaliação desta tão evidente situação
inafetiva. Antes de 60 dias, no dia 04 de abril, o caso da tal “negligência afetiva”
foi resolvido.
Não há por que conceituar como “negligência
afetiva”, ou vontade de “ter atenção e carinho”, esta grave situação de
descuidado e de irresponsabilidade civil a um vulnerável. A violência explícita
na atitude proativa continuada de exclusão do núcleo familiar torna-se sinônimo
de dolo. Gostaria muito que alguém se interessasse pelo estudo do feminino contido
no caso. O caso em pauta traz duas mulheres, uma mãe de meio-irmã desta
criança, portanto exercendo o papel de mãe, título, não a função materna,
equívoco comum cometido por operadores de justiça, outra assistente social por
profissão que vende o serviço de matar uma criança, parece que para proteger um
homem, o pai. Mulheres que se unem para matar uma criança? Acredito que é uma
evidência cruel da inexistência do instinto materno das mulheres, mito falso.
Venho afirmando que esta falsa crença, instinto materno nas mulheres, não é
compulsório. A boa qualidade da maternidade é alimentada pelo cuidado e responsabilidade
afetiva que foram recebidos enquanto esteve na posição de filha, numa cadeia
alimentar de afeto. Há que se entender também que a função de mãe, isto que
estamos definindo nesta cadeia, é exercida também em substituição, ou seja, não
é obrigatório a consanguinidade. Adotamos, afetivamente, todos os filhos, os de
sangue também. Assim, tanto mãe quanto pai, podem ser substituídos
saudavelmente.
No entanto, em nada surpreenderia se
alguma leitura pseudopsicológica dos fatos aparecesse contemplando a pérola da
moda jurídica, a alienação parental, atribuída à mãe desta criança, morta há 04
anos. Quem sabe, até se matou como forma de uma alienação parental. Não me
refiro aqui à postura teórica séria e consequente da Desembargadora Maria
Berenice Dias. Mas, absurdos são ditos e praticados sem fundamentos teóricos ou
clínicos, acusando crianças e mães que denunciam. Atualmente, é ela, a
alienação, que abriga e perverte a quase totalidade dos desvios de
comportamento praticados por pais contra seus filhos invertendo a culpa e
jogando-a em quem tenta proteger a criança.
Conselhos Tutelares, segundo a Secretaria
de Direitos Humanos, faltam 632 para atendimento regular. Os que existem,
sofrem de faltas de estrutura física, de estrutura instrumental e de estrutura
de formação de pessoal. Prova da ausência de cuidado público. Denúncia anônima,
como é mote de campanha, não existe, só com nome completo, endereço e o devido
C.P.F. Inexperientes em lidar com a excelente performance verbal dos
psicopatas, Psicólogos Judiciais e Assistentes Sociais não ousam afirmações que
evidenciem os abusos físicos, sexuais, e psicológicos, que apontem um adulto
praticante. O medo dos processos subsequentes, o movimento de Backlash contra
técnicos especialistas, traz o silêncio do segredo, presente nestes casos
intrafamiliares de desrespeito aos direitos fundamentais de vulneráveis. É
melhor desacreditar da criança... E a conivência se faz. Há ausência de
Políticas Públicas. Mas, criança não paga impostos e não vota.
Recentemente, fomos brindados por texto
primoroso de Luiz Felipe Salomão, ministro do Superior Tribunal de Justiça,
sobre o julgamento do abandono afetivo, mostrando as duas posições sobre a
transformação do afeto em cobrança pecuniária. Em 2005, e em recurso em 2009,
uma Turma entendeu que o abandono e o descumprimento dos deveres de sustento,
levam à destituição do poder familiar, o que foi entendido como uma contramão
de uma possibilidade de aproximação entre pai e filho, negando a indenização.
Mas, em 2012, outra Turma, contrariou esta posição e acolheu a possibilidade de
indenização de abandono afetivo, tese baseada em fundamentos psicanalíticos
para atribuir compensação financeira ao sofrimento imposto. O autor salienta a
questão da intervenção do Estado naquilo que a Constituição garante, a
intimidade e a vida privada, em nítida demonstração da liquidificação de
privado e público. (“modernidade líquida”, Bauman). O que significou para os
Operadores de Justiça no caso de Bernardo o termo continuado “negligência
afetiva”? Sabem que ela mata? Mas, parece que a concretude dos vários pedidos
de ajuda, (provas?), não convence tanto quanto complexas abstrações pseudo-psicanalíticas.
Se Francisco pede perdão pelos abusos
cometidos por padres ao longo da nossa história, encontramos um Juiz que não
reconhece seu erro, dizendo que acredita sempre que pais não maltratam filhos.
Como acreditar na bondade humana generalizada quando se está na posição de
arbitrar sobre a proteção de vulneráveis? Foto de família feliz? A Justiça opta,
cegamente, cada vez mais, pela idealização da convivência entre pais e filhos,
custe o que custar, como a lei, recentemente sancionada, de visitação a pais apenados.
Já havia a autorização per caso para este tipo de visitação funcionando muito
bem, o que embaralha o propósito do aparecimento de mais uma lei. Gostaria que
me respondessem sobre o grande bem do convívio com um pai, por exemplo, que
matou a mãe a pancadas ou facadas na frente da criança, se a exceção da lei é
apenas o dolo contra a criança. Visita em presídio, nos nossos presídios, é
saudável para uma criança? Tirar a roupa para a revista é adequado? Mas, parece
que todo homem é essencialmente bom. É a crença vigente, quase uma religião.
Afinal, dos conceitos psicanalíticos incompletos e superficializados,
guardou-se apenas que pai é pai. Serão confeccionadas salinhas com borboletas e
passarinhos decorando paredes coloridas, que, silenciosamente, testemunharão os
constrangimentos e os medos destes pequenos visitantes de “bons pais” em penitenciárias.
Enquanto isso, as Salas de Depoimento Sem Dano que permitem a revelação de
abusos cometidos em estado de segurança para a criança, diminuindo os enormes
prejuízos causados pela perversão, estas, são raríssimas e de difícil aceite.
Cabe ressaltar o trabalho de qualidade no uso da Sala de D. S. D., do Juiz José
Antônio Daltoé Cezar, hoje Desembargador, postura impecável ao reconhecer com
respeito e crédito a ajuda da criança no processo em que ela é vítima.
Os perversos, difícil diagnóstico de psicopatia,
até mesmo para profissionais da área que não sejam gabaritados, são pessoas
acima de qualquer suspeita: afáveis, simpáticos, envolventes, manipuladores.
Não tem um olho na testa ou a marca dos três algarismos seis em ninho embaixo
do cabelo. A patologia é caracterizada, entre outros fatores, pela incapacidade
de sentir culpa pelas maldades que pratica contra o outro. Há uma ausência da
capacidade de empatia. Estão entre nós. Todos nós conhecemos, e nos
relacionamos com pedófilos, necrófilos, espancadores de crianças, mulheres e
idosos, violentos verbais domésticos. Compulsivos em suas específicas
perversões, amantes de um pequeno poder secreto, por vezes conseguem alcançar
um grande poder, em áreas como a monetária, a política ou a profissional. A
fragilidade dos Operadores de Justiça diante destes psicopatas que escolhem a
criança e o adolescente como alvo de sua perversão, é quase caricata.
A pífia campanha de combate à violência
contra a criança, incentivando apenas o denuncismo, é enganosa na garantia do
anonimato, aparece uma vez por ano no pré-carnaval. A ausência do cuidado com o
acolhimento adequado e qualificado com estas vítimas, e o necessário tratamento
psicológico especializado, a precária formação dos Operadores de Justiça e técnicos
judiciais, a conivência social pela omissão ou pela impotência, são os
indicadores sombrios para uma sociedade futura, repleta de pessoas sequeladas
na infância, que foram tatuadas na alma. As crianças quando não são as vítimas,
são testemunhas desta prática e da sua impunidade. Não conseguirão apreender a
contento o código de civilidade. Não alcançarão o exercício da cidadania. A
inexistência de Políticas Públicas, real exercício da proteção, permanentes,
consistentes e consequentes é a negligência pública que contraria,
frontalmente, o melhor interesse da criança. A omissão patrocina a conivência
com a violência contra a criança.
Como anunciado no artigo “Imagina na
Copa”, por ocasião da Copa das Confederações, a ineficácia e a ausência de
programa de educação, conscientização, acolhimento, fiscalização e acolhimento
pelos órgãos competentes. Enfim, a responsabilidade da proteção que cabe à
família, à sociedade e ao Estado, o combate à exploração sexual de crianças e
adolescentes, permanece em seu estado de inércia. A reportagem coordenada por
Carolina Benevides e colaboradores, O Globo, mostra pelo trabalho de campo no
entorno dos estádios e nos principais pontos turísticos das cidades que terão
jogos da Copa do Mundo de Futebol, que aliciadores são vistos trabalhando a
olho nu. Promessas de ganhos entre R$10.000,00 e R$15.000,00 por trabalhos
sexuais prestados aos estrangeiros, por meninos e meninas de 10 a 17 anos.
Atestado da nossa miséria sócio-econômica e psicológica. Por que só repórteres
enxergam o que está tão visível? Contra essa organização criminosa, excepcionalmente,
será lançada uma segunda vez este ano aquela campanha, cartazes em aeroportos,
hotéis, e publicidade em emissoras de televisão, que objetiva o denuncismo. A
única coisa que sairá do papel e das reuniões. Após a denúncia, nada. Fora a
possibilidade de processo contra quem denuncia. Impotência. Há um abismo
intransponível entre a Lei escrita e o sofrimento da criança pelo abandono,
negligência, abuso e exploração sexual, na família, no social e no judicial. Somos
uma sociedade cenográfica. Os abusos contra crianças e adolescentes são uma
sombra social.
São
muitos os culpados. A responsabilidade com nossos pequenos é de todos. Muitos
são culpados com uma dose de dolo por omissão egoísta. No caso de Bernardo, os
seus executores detém o dolo, mesmo que sob os auspícios de todos os que
tiveram a possibilidade de salvá-lo, numa autêntica e irrefutável omissão de
socorro.
Finalmente ele chegou à solução de suas
dores, por todos conhecidas. Na falta do cuidado e da responsabilidade, a
Proteção e a Paz foram a ele impostas. Como aconteceu, anteriormente, com
outras crianças, e, por este estado de coisas, acontecerá com outras, foi a
Morte que trouxe a proteção para Bernardo. Foi a Morte que falou a verdade de
Bernardo. A Morte foi sua única chance. Sua mãe foi poupada desta tragédia,
diferente de tantas outras mães condenadas ao choro perpétuo. Com ele, morremos
todos em dignidade e cidadania. Ana
Maria Iencarelli.
Psicanalista de Crianças
e Adolescentes. <anaiencarelli@gmail.com>
Mais uma pobre indefesa se foi!!
ResponderExcluirhttp://m.ndonline.com.br/joinville/noticias/301582-crianca-que-morreu-por-agressao-tambem-pode-ter-sido-estuprada-pelo-padrasto.html
Mais uma pobre indefesa se foi!!
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Muitos vulneráveis se vão, e não ficamos sabendo se não for por bala perdida. O espaço na mídia para o descumprimento dos direitos fundamentais da criança, como nos processos judiciais, exige provas de materialidade. A bala perdida o é, ainda bem que estas crianças que tem a vida ceifada por uma tragédia dessas reconhece-se a garantia do seu direito à vida e consequente indignação pela violação deste direito. Sem a prova da materialidade, no seio dos lares, as crianças são torturadas física, psicológica e sexualmente, e as instituições se omitem, preferem a cegueira deliberada. E até quando se evidencia a prova, o tempo é de acompanhamento. Os crimes às escuras, permanecem nas sombras, mas marcam a criança com uma tatuagem na alma.
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