Wood Allen VS.
Soon-Yi e Dylan, ainda.
O tempo midiático já consumiu a notícia, e, o
conteúdo em questão, já se alojou em seu reino blindado do eterno e indesvendável
segredo. Voltamos a associar, automaticamente, o nome aos seus geniais filmes.
O título do artigo publicado na
Revista de Domingo do O Globo, de 16 de fevereiro de 2014, é “Wood Allen VS.
Mia Farrow, ainda”.
Lamentável. Será que se lhe pedissem
para escrever sobre a relação entre a inversão de sentido da rotação do
astro sol e os desastres climáticos, você escreveria? Ou sobre a física
quântica no nosso cotidiano, diria o que “acredita” ou “não acredita”? O
comportamento humano e a psicopatologia não são apenas o que os olhos veem. Os
pedófilos não exibem a sua perversão na testa em letras de neon intermitente.
Posso lhe assegurar que você conhece vários pedófilos, quem sabe até algum
necrófilo, enfim, perversos ocultos. Todos, conhecemos. São, como psicopatas
que o são, médicos, advogados, professores, padres, pastores,
prefeitos, atores, cantores, cineastas, técnicos desportistas,
comunicadores, empresários, policiais, políticos, militares, dentistas, etc.,
etc., etc., muitos, de muito sucesso profissional, alguns ditos gênios no que
fazem. São sedutores e manipuladores, ou seja, em geral inteligentes, são
simpáticos, sociáveis, agradáveis, por vezes, engraçados, encantadores, porque
é, exatamente assim, que escondem sua perversão. Pais e padrastos
perfazem 85% dos casos de abuso sexual em crianças e adolescentes. O incesto é
ingrediente importante para esta perversão.
O prazer do abusador não é sexual, é
o prazer secreto de enganar a todos. Enganar a você, a mim, a todos, até a
criança de quem ele abusa, que é obrigada a fazer o pacto do
segredo. Isto proporciona a eles uma intensa sensação narcísica de
superioridade. Assim, os abusadores, gozando da proteção de sua vítima, da
nossa cegueira, nosso descuidado, acumulam prestígio e respeitabilidade
para se tornarem intocáveis. E, conseguem.
É inacreditável que ainda persista a
fantasia, veiculada no artigo, de que se conhece alguém olhando nos olhos,
pela sua produção, ou pelo seu comportamento social. Esta mágica de saber quem
é o outro, alimenta a onipotência do pedófilo. Envolvente, driblar esta crença
primária é uma atração para ele. Ninguém descobre quem ele é. Não nos cabe
o julgamento pela “cara”, ou, a sentença “inocente”, baseados em aparência. Abusadores
não são nunca condenados pela Justiça. O abuso sexual é um crime quase perfeito
que imprime uma tatuagem na alma de meninos e meninas. É a palavra da criança
desacreditada diante da palavra de um adulto “acima de qualquer suspeita”, como
são vistos. Assim, fica na conta de uma tal “construção cognitiva” da criança,
da alienação parental da mãe, da mentira da criança, etc. Em nenhuma destas
alegações é levada em consideração a idade da criança, sua capacidade
cognitiva, sua capacidade de mentir com conteúdos sexuais que ela ainda não
teve acesso, os critérios de observância da alienação parental, o luto pela
separação, por exemplo. Ao contrário, parte-se do princípio de que a mãe sempre
ficou frustrada pela separação, negando sempre o evidente alívio que tantas
vezes a separação traz. Acrescente-se que o desespero de uma mãe na procura da
escuta e da proteção a um filho pequeno abusado é sempre interpretado como
histeria, tornando-se prova de seu desequilíbrio, sem as devidas investigações
psicológicas a este respeito. Crime às escuras
cujos vestígios, nunca com materialidade, só são captados por
especialistas com expertise verdadeira. Mas, raros são os que têm a coragem de
afirmar ou, pelo menos, apontar os indícios, e assinar embaixo. O fenômeno do
“backlash” é cada vez mais avassalador contra os técnicos, a omissão tem sido
usada amplamente.
A incapacidade de escuta da criança, ou pós-criança, que
revela um abuso sexual é, totalmente, antagônica à escuta da criança
consumidora ou indutora de consumo. Na letra da Lei, Sujeito de Direito, na realidade,
desacreditada. Hoje, todas as crianças que quebram este pacto doentio do
silêncio, são “definidas” como dominadas na infância e pela vida toda por uma
poderosíssima mãe que pratica, para sempre, a consumida
alienação parental. Parece até que ficam sem juízo de valor, sem critério de
realidade para sempre.
O conceito de Modernidade Líquida,
(Bauman), bem se aplica aqui. Impossibilitada de sentir uma
responsabilidade empática pela criança numa situação de abuso, a articulista
banaliza a psicopatologia, duvida de seu poder, coloca a arte acima da
sociedade, das crianças, como se fossem comparáveis ou excludentes. Comportando-se
como é o corrente atual, superficial e descompromissadamente, expele-se a angústia. Tem
nos faltado o devido cuidado com um mecanismo de defesa usado pelo nosso ego ao
se deparar com uma situação de impotência aguda, a identificação com o
agressor.
Ana Maria Iencarelli.
Psicanalista de Criança e Adolescente. Fev. 2014.
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