Cláudia Galiberne Ferreira[1]
Infelizmente, o drama da violência praticada contra mulheres e crianças faz parte do dia a dia dos noticiários. Está presente em lares, locais de trabalho, ruas, parques, escolas em suas mais variadas formas, física, psicológica e patrimonial. De tão “comum” chega a ser banalizada por muitos e a esses pouco comove.
Muitas mulheres temem fazer a denúncia, muitos serviços públicos não registram corretamente os casos de violência contra as mulheres e crianças e, mesmo assim, os números nacionais e mundiais envolvendo a violência de gênero[2] são por demais significativos.
Consoante Anastasia Divinskaya, representante da ONU Mulheres no Brasil,
“a violência contra as mulheres e meninas é uma grave violação dos direitos humanos. Tem uma implicação devastadora na vida das mulheres, das suas famílias e comunidades, bem como de toda a sociedade. Trata-se de uma pandemia e o Brasil não é exceção. No entanto, a questão da violência é geralmente silenciada. A violência doméstica é considerada um assunto privado e interno às famílias. Em geral, as sobreviventes da violência não denunciam com medo de serem culpabilizadas pela sociedade. Assim, os dados existentes não são consistentes e não fornecem o quadro preciso da situação real em relação à violência contra as mulheres e meninas”[3].
O cenário é aterrorizante, mesmo à falta de um banco de dados adequadamente alimentado, como evidenciam as estatísticas trazidas pela ONU Mulheres no Brasil:
“Globalmente, mesmo antes da COVID-19, uma em cada três mulheres já havia sofrido violência física ou sexual durante a sua vida. Só no ano passado, 243 milhões de mulheres e meninas, entre 15 e 49 anos de idade, sofreram violência sexual ou física por um parceiro íntimo. Trata-se de uma pandemia de proporções inimagináveis. Em alguns países, tais como os afetados por conflitos, a situação é ainda pior, onde cerca de 70% das mulheres e meninas reportaram já ter sido vítimas de violência baseada em gênero. À medida que o mundo recuou para o interior das casas devido às medidas de distanciamento e isolamento sociais introduzidas para conter a pandemia da COVID-19, relatórios evidenciaram um aumento alarmante da já existente pandemia de violência contra as mulheres em diversos países do mundo.
A violência – seja sexual, física, psicológica ou econômica – pode acontecer em qualquer lugar e a qualquer hora: em casa, no trabalho e em áreas públicas. As mulheres e meninas não se sentem seguras nos transportes públicos. De acordo com a pesquisa “Percepção sobre Segurança das Mulheres nos Transportes”, recentemente conduzida pelos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, 97% das entrevistadas relataram ter sido vítimas de assédio nos meios de transporte; 71% disseram conhecer uma mulher que tenha sido vítima de assédio sexual num espaço público; e 46% das mulheres não se sentem confiantes para usar os meios de transporte temendo sofrer assédio sexual. A análise dos dados de 2019 sobre vitimização mostrou que: a cada hora, 526 mulheres foram vítimas de agressão física (4.7 milhões de mulheres ou 9%); 27.4% das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses (16 milhões de mulheres); 21.8% foram vítimas de ofensa verbal, como insulto, humilhação ou xingamento; 8.9% foram tocadas ou agredidas fisicamente por motivos sexuais (9 por minuto – 4.6 milhões); 3.9% foram ameaçadas com faca ou arma de fogo (1.7 milhão); 3.6% sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento (3 por minuto – 1.6 milhão); 42.6% das mulheres de 16 a 24 anos afirmaram ter sofrido violência nos últimos 12 meses; 28.4% das vítimas eram pretas; 27.5% eram pardas; e 24.7% eram brancas”[4].
Em recente declaração, a diretora executiva da ONU Mulheres e vice-secretária geral das Nações Unidas, Phumzile Mlambo-Ngcuka, em apelo a chefes de estado de todo o mundo pela tomada de medidas de proteção a mulheres e meninas em meio à pandemia por covid-19, trouxe novos dados alarmantes:
“Mesmo antes da existência da Covid-19, a violência doméstica já era uma das maiores violações dos direitos humanos. Nos 12 meses anteriores, 243 milhões de mulheres e meninas (de 15 a 49 anos) em todo o mundo foram submetidas à violência sexual ou física por um parceiro íntimo. À medida que a pandemia da Covid-19 continua, é provável que esse número cresça com múltiplos impactos no bem-estar das mulheres, em sua saúde sexual e reprodutiva, em sua saúde mental e em sua capacidade de participar e liderar a recuperação de nossas sociedades e economia.
A ampla subnotificação de formas de violência doméstica já havia tornado um desafio a coleta de dados e respostas, menos de 40% das mulheres vítimas de violência buscavam qualquer tipo de ajuda ou denunciavam o crime. Menos de 10% das mulheres que procuravam ajuda, iam à polícia. As circunstâncias atuais tornam os relatórios ainda mais difíceis, incluindo limitações no acesso de mulheres e meninas a telefones e linhas de ajuda e interrompem serviços públicos como polícia, justiça e serviços sociais. Essas interrupções também podem comprometer os cuidados e o apoio de que as sobreviventes precisam, como tratamento clínico de estupro, saúde mental e apoio psicossocial. Isso também alimenta a impunidade de agressores. Em muitos países, a lei não está do lado das mulheres; 1 em cada 4 países não possui leis que protejam especificamente as mulheres da violência doméstica”[5].
E essa violência, além dos aspectos morais, sociais e econômicos, traz reflexos na saúde pública. E não falamos aqui apenas da violência física e a busca pelo atendimento hospitalar derivado dessa violência, mas também dos danos psicológicos imediatos ou a longo prazo dela decorrentes.
Carpena et al. levaram a efeito ampla pesquisa a fim de comprovar de qual forma a violência, seja ela física, econômica ou social, impacta na saúde mental das brasileiras. Os resultados são reveladores [6][7], conforme se colhe do estudo em destaque:
“A violência é um problema de saúde pública global e as mulheres correm maior risco de vitimização, especialmente por parte de familiares ou conhecidos. De acordo com o Relatório de Metas de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas 2019, de 2005 a 2017, 18% das mulheres entre 15 e 49 anos sofreram violência física e / ou sexual por parceiro íntimo nos últimos 12 meses. A maioria (64%) das vítimas de homicídios por parceiro íntimo / familiares em 2017 também eram mulheres.
[...]
A violência pode levar à morte nos casos mais extremos e, quando isso não ocorre, pode ter consequências importantes para a saúde mental e a qualidade de vida da vítima, independentemente do tipo de violência (física, sexual, econômica ou psicológica). demonstraram a associação entre violência e doença mental, e que certos tipos de violência, como por parceiros íntimos ou conhecidos, são mais prevalentes em mulheres. Outros estudos mostraram que a violência pode desempenhar papéis diferentes no transtorno depressivo em homens e mulheres na idade adulta. A desigualdade de gênero e a exposição a adversidades graves, especialmente violência, podem explicar a maior prevalência de certos transtornos mentais em mulheres.
[...]
A violência contra as mulheres pode assumir várias formas, como físicas, sexuais e emocionais / psicológicas, e essas formas podem coexistir. Vários estudos mostraram que as vítimas de violência feminina correm um risco maior de transtornos mentais. Além disso, mulheres que sofreram violência doméstica e abuso repetidos, outras formas de vitimização violenta ou expressões diretas de raiva ou agressão têm uma forte tendência de suprimir suas emoções. Isso pode estar relacionado a outros comportamentos, como uso de substâncias e outras consequências psicológicas de violência, incluindo ideação suicida. Quando combinada com a natureza submissa de algumas mulheres, a exposição contínua a eventos estressantes, como violência, pode levar a extrema vulnerabilidade, medo e sentimentos de incapacidade ou impotência, que podem causar ou contribuir para problemas de saúde mental.”[8]
Por fim, conclui a pesquisa que as mulheres no Brasil têm uma maior incidência de episódios depressivos e ideação suicida do que os homens, o que está intimamente relacionado ao fato de que as mulheres são mais vulneráveis e estão mais expostas à violência de todos os tipos, por parte de familiares ou conhecidos[9].
Gonzalez, de seu lado, citando o estudo de Carpena, afirma que:
“Os sistemas de gênero sustentam o risco de violência contra as mulheres por meio de normas, práticas e relações tendenciosas em vários níveis, incluindo famílias, local de trabalho e relacionamentos íntimos. Esses mesmos fatores sociais reforçam as desigualdades sistêmicas de gênero com consequências negativas para a saúde, incluindo transtornos depressivos.2 As considerações de gênero são particularmente importantes em uma perspectiva de saúde global. A desigualdade de gênero é maior em muitos ambientes com recursos limitados e, por meio das disparidades na alocação de recursos e no acesso à saúde e educação, geralmente afeta as mulheres de maneira desproporcional. Os determinantes sociais, incluindo a educação e o status socioeconômico, desempenham um papel importante na saúde e no bem estar dos indivíduos em nível populacional e são eles próprios de gênero.
[...]
Em geral, este estudo fornece suporte adicional para a significativa preocupação de saúde pública com a violência contra as mulheres e a contribuição da violência para a depressão e a ideação suicida. As mulheres correm o risco de exposição a experiências adversas específicas de gênero e ambientes que podem afetar negativamente a saúde e o bem-estar (por exemplo, discriminação, abuso infantil ou violência do parceiro íntimo). Muitos desses fatores podem co-ocorrer simultaneamente ou ao longo do tempo, criando uma carga cumulativa que se traduz em iniquidades em saúde ao longo da vida de um indivíduo”.[10]
As consequências dessa violência podem ter reflexos imediatos já na infância, ou se manifestarem mais tardiamente, na idade adulta.
De acordo com Coelho et al:
“Adversidades na infância (ACs) são um grupo de situações negativas que crianças e adolescentes podem enfrentar durante o desenvolvimento. Este grupo de ocorrências precoces inclui uma infinidade de eventos desfavoráveis, como psicopatologia parental, abuso físico e sexual e violência familiar. Vários estudos exploraram as ACs como fatores de risco para vários desfechos de saúde. Eles estão associados a consequências na vida adulta, como psicopatologia adulta, suicídio e doenças médicas. A propensão para a ocorrência de doenças físicas e mentais na idade adulta podem surgir por meio de alterações na expressão epigenética, no processamento do estresse, na neurogênese, ou na neuroplasticidade
[...]
Para ambos os sexos, a dimensão do desajuste familiar - abrangendo abuso físico, negligência, transtornos mentais dos pais e violência familiar - foi o núcleo central de CAs. Mulheres endossaram mais ACs do que homens”[11].
A existência de leis como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio[12], apesar de valiosos instrumentos de combate à violência, não são capazes, por si só, de pôr um fim ao seu caráter endêmico e epidêmico no Brasil.
E,
“além de um arcabouço legal, a atenção à mulher em situação de violência pode ser discutida a partir de uma perspectiva bioética. Para tanto a reflexão da Bioética de Intervenção é adequada por assumir que as questões éticas deixam de ser algo de cunho íntimo ou restrito ao individual e adotam características coletivas e públicas[13]”.
O fenômeno da violência aqui tratado faz emergir questionamentos de cunho ético, muito caros à bioética, como a autonomia das pessoas, a beneficência, a não-maleficência, justiça e equidade[14], princípios esses que são sistematicamente violados quando as políticas públicas específicas são falhas ou inexistentes.
Violados também os princípios éticos de respeito à dignidade humana contidos na declaração universal sobre bioética e direitos humanos da Unesco - em um conceito bioético amplo -, e relacionados a inequidades sociais e ambientais.
Portanto, o gravíssimo quadro da violência de gênero no Brasil, com reflexos sociais e econômicos evidentes, implica também em uma questão de saúde pública com efeitos deletérios a longo prazo, que não serão resolvidos com uma abordagem meramente legalista.
Leis severas devem ser acompanhadas de políticas públicas que observem os princípios universais e éticos de proteção aos direitos humanos, de “homens e mulheres”, em igualdade de condições.
Somente essa observância poderá promover uma profunda transformação estrutural e conjuntural da sociedade, machista e misógina em pleno século XXI, e reverter essa triste realidade.
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