O juiz-estrela e as constelações familiares
Publicado pela Redacção Noticias Online / 28/11/2019.
Há tempos atrás,
tornaram-se – felizmente! – conhecidas pelo público em geral as autênticas
atrocidades produzidas em acórdãos da autoria do juiz desembargador Neto de
Moura, muito em particular em processos de violência contra mulheres.
Ora, já na altura
assinalei que o problema não era tanto “o” Neto de Moura, mas sim “os” Netos de
Moura da Justiça portuguesa e, mais importante e mais grave do que isso, a
forma como o nosso sistema da Justiça permite, acarinha e até incrementa
personagens e sentenças como aquelas, tendo-se também conhecido já nessa
altura, por exemplo, a barbaridade da desculpabilização da violação de uma
jovem praticamente inconsciente, ocorrida num bar de Vila Nova de Gaia, sob o
extraordinário “argumento” de que ocorrera numa “noite com muita bebida
alcoólica, ambiente de sedução mútua”[1], saída da pena do próprio presidente
da Associação Sindical dos Juízes, o juiz desembargador Manuel Soares.
Mas eis que na semana
passada outro astro do firmamento judiciário português brilhou mais forte. O
juiz do Tribunal de Família e Menores de Mafra, Joaquim Manuel da Silva, já bem
conhecido de quantos têm de ir àquele Tribunal, em particular das mães e dos
respectivos advogados, foi à CMTV falar, sem qualquer respeito pelo seu dever
de reserva – mas isso não é nada que interesse ao Conselho Superior da
Magistratura… – sobre um processo que tem entre mãos em que um casal de
ex-namorados disputa a guarda de um cão que fora por ambos adquirido no decurso
do namoro.
Parece mentira, mas é
verdade: para gáudio de uma certa Comunicação Social que continuamente o
elogia, apresentando-o mesmo como uma espécie de “super-juiz” (mais um!?) da
área da Família e Menores, Sua Excelência perorou detalhadamente sobre o
enquadramento jurídico da guarda, não das crianças, mas dos cães.
E explicou que, perante
a divergência sobre quem deveria ficar com o canídeo (uma cadela da raça
Pittbul chamada Kiara), chamou (!?) a dita cadela e os donos a Tribunal e aí
procedeu a uma “observação directa da interacção do bicho com aqueles”. Mas
quando esse seu douto exame directo não foi conclusivo, ordenou “uma perícia
comportamental” à cadela, nomeando para o efeito um perito em comportamento
animal, tudo isto sob o argumento que “um dos critérios a ter em consideração
é, de facto, o interesse do animal”.
Parece anedota, mas a
realidade é, infelizmente, esta: a mesma Justiça que se mostra tão desatenta
perante casos gravíssimos de violência doméstica e de abandono de crianças e
idosos, bem como de não cumprimento das responsabilidades parentais (a começar
pelas pensões de alimentos), preocupa-se, afinal, e muito, com o “superior
interesse do cão” em caso de divórcio ou separação dos respectivos donos…
A questão é que esta
não é nem uma questão isolada nem que tenha ocorrido por acaso. Com efeito, o
juiz, assim (de novo) promovido a vedeta televisiva e até baptizado pela
imprensa “amiga” de “juiz amigo das crianças”, é, afinal, um dos adeptos mais
ferrenhos da imposição da guarda partilhada dos filhos menores em caso de
separação ou divórcio dos respectivos progenitores, vangloriando-se mesmo de,
nos 500 processos tutelares cíveis (de regulação das responsabilidades
parentais) que, em média, lhe são distribuídos por ano, fazer apenas um único
julgamento, “resolvendo” os restantes 499 por acordo na base do já referido
regime da guarda partilhada. Isto inclusive em casos, alguns gritantes, de
violência doméstica, impondo por esta via, e com indizíveis e catastróficas
consequências, a manutenção do contacto das vítimas de violência doméstica
(sejam elas as ex-mulheres brutalmente agredidas, sejam as crianças que
assistiram a tais agressões e/ou foram também elas violentadas) com os seus
agressores, mesmo que já exista processo-crime a correr contra estes, nele já
tenham sido acusados ou até já hajam sido condenados pela prática do referido
crime, propiciando assim, e tal como já aconteceu, novos e mais agressivos, e
até fatais, episódios de violência.
A imposição da guarda
partilhada ou residência alternada – determinando, por exemplo, que a criança
passe alternadamente uma semana com a mãe e outra com o pai, e assim
sucessivamente – como regime-regra é um dos grandes objectivos prosseguidos
pelo fortíssimo lobby dos interesses e dos interessados que se albergam sob a
capa (pretensamente científica, mas já completamente desmascarada numa série de
países e designadamente nos Estados Unidos da América) da teoria da “Síndrome
de Alienação Parental” (SAP), agora rebaptizada de “igualdade parental”.
Recorde-se que tal
teoria foi criada por um psiquiatra norte-americano, Richard Garner, que se
especializou em aparecer nos tribunais americanos como perito de defesa de
pedófilos, a pretender justificar a manutenção dos contactos das crianças com
os progenitores seus agressores, inclusive sexuais, sob o pretexto de que a
interrupção de tais contactos dos filhos vítimas com os pais agressores
causaria aos primeiros uma patologia ou doença intitulada “Síndrome de
Alienação Parental” com base na qual diversos “juízes estrelas” impuseram,
muitas vezes com resultados desastrosos, a manutenção de tais contactos e, pior
do que isso, e perante a resistência oposta pelo progenitor vítima,
descredibilizaram os relatos e denúncia desta e, inclusive, “justificaram” a
retirada da guarda das crianças e a sua entrega ao progenitor agressor.
O caso conhecido da mãe
Ana Vilma Maximiano é paradigmático. Somente com a pronúncia ordenada (isto
apenas na fase de recurso e após arquivamento dos autos pelo Ministério Público
e rejeição do requerimento de abertura de instrução por parte do respectivo juiz,
ambos do Tribunal de Cascais) pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi possível
perceber-se como duas técnicas da Segurança Social terão elaborado relatórios
intencionalmente falsos para assim justificarem a retirada, pelo Juízo de
Família e Menores do mesmíssimo Tribunal de Cascais, há 4 anos atrás, de duas
filhas àquela mãe e a sua entrega ao pai, entretanto condenado, por sentença
transitada em julgado, pelo crime de violência doméstica agravada!
E as duas completas
falsidades – assim postas a nu – de tais relatórios eram a de que a mãe tinha
abandonado a filha mais nova num café (quando a tinha deixado entregue a uma
pessoa amiga assim que o aparelho que tinha consigo assinalou a presença
próxima do agressor) e a de que se preparava para fugir com as meninas,
impossibilitando e inviabilizando qualquer contacto com o pai. E claro que o
pano de fundo ideológico desta barbaridade era o quadro, inventado, da mãe
“alienadora” e das crianças “traumatizadas” com essa sua pseudo-alienação.
Ora, a verdade é que se
podem existir casos em que um dos progenitores procura utilizar as crianças
como arma de arremesso contra o outro, podendo mesmo chegar ao ponto de, com
esse propósito, impedir ilegitimamente o contacto das crianças com o outro
progenitor, esses não são se todo a maioria e muito menos representam uma
parcela minimamente significativa das situações de violência doméstica, em que
o que está fundamentalmente em causa é a salvaguarda e, por vezes até, a
própria sobrevivência das vítimas, ou seja, do cônjuge agredido e também dos
respectivos filhos, mesmo que “só” tenham presenciado essas agressões.
Por outro lado, a
teoria da Síndrome de Alienação Parental foi já desmentida por inúmeras
associações e comunidades científicas e jurídicas, desde a Associação Americana
de Psiquiatria e a Associação Americana de Psicologia até ao Departamento de
Justiça do Canadá e a Corte di Cassazione (o Supremo Tribunal) de Itália que
sustentaram e decidiram a não aceitação da SAP por falta de qualquer evidência
científica.
Eis então que os
adeptos de tais teorias decidiram rebaptizá-la, passando a apresentar-se como
defensores de um princípio com o qual, em princípio, todos nos identificaremos
– o da igualdade parental –, mas fazendo-o para continuarem a sustentar o
essencial das mesmas posições. E que, precisamente em nome dessa “igualdade”,
têm permitido, entre nós, que um Tribunal de Família e Menores não apenas
ordene e imponha contactos com um agressor que o Tribunal Criminal que o julgou
e condenou por violência doméstica e/ou abusos sexuais terminantemente proibiu,
como também que, perante a resistência do progenitor vítima, o ameace com a
“alternativa” de ter de aceitar o regime da guarda partilhada sob pena de
perder na totalidade a guarda dos seus filhos.
A dita guarda
partilhada ou residência alternada pode funcionar bem nos casos em que os
progenitores, apesar de se terem separado, mantêm entre si um relacionamento
correcto e equilibrado mas, mesmo aí, terão de ser devidamente analisadas as
consequências que de tal regime decorrem ou podem decorrer para a criança,
designadamente as que resultam de esta não ter um local base da sua vida – onde
tem a maior parte dos seus amigos, das suas ocupações, das suas roupas, dos
seus pertences pessoais – mas sim dois, entre os quais se divide
permanentemente.
A imposição de tal
regime como regra – que é a prática habitual de magistrados como o juiz Joaquim
Silva e que constitui o objectivo fundamental dos defensores das teorias da
alienação ou da igualdade parental (que até já apresentaram uma petição para
que esse passe a ser o novo regime legal) representa uma medida favorecedora da
parte mais poderosa (o agressor) e altamente penalizadora da parte mais fraca
(a vítima), atirando para cima desta com o ónus da prova da desadequação do
regime naquele caso concreto e fazendo com que, caso não consiga ir a Tribunal
e aí fazer uma demonstração inequívoca dessa mesma desadequação, o agressor
passe a ter a guarda partilhada das crianças em frente das quais agrediu
violenta e repetidamente o outro progenitor. Trata-se, pois, de uma verdadeira
barbaridade, habilmente disfarçada de humanismo, de igualdade e de respeito
pela dignidade e pelos sentimentos das pessoas.
Mas como se tudo isto
já não bastasse, eis que estas teorias e estas práticas condescendentes, senão
mesmo directamente defensoras, dos agressores e ofensores são agora reforçadas
com os chamados “modelos terapêuticos das constelações familiares” e aos quais
o juiz-estrela Joaquim Silva e alguns dos seus pares vêm recorrendo de forma
crescente para emprestarem um falso verniz de cientificidade às medidas mais
absurdas e injustas.
Tal como o juiz Joaquim
Silva foi também explicar no 1º Congresso Internacional das Constelações
Familiares, realizado em Lisboa em Outubro último, estas teorias sustentam que
os comportamentos actuais, designadamente dos agressores, estarão afinal
associados “aos comportamentos que vêm dos nossos antepassados e que passam
para os 23 genes que temos em cada uma das células – 23 no espermatozóide e 23
no óvulo –, que não trazem apenas códigos, trazem também as coisas boas e más
dos nossos pais, trazem as expectativas dos nossos pais, para nós as
continuarmos e os nossos filhos levam as nossas”[2](sic).
Ora, importa referir
desde logo que o criador desta tese foi Bert Hellinger, um fervoroso nazi
admirador de Hitler que se transformou em sacerdote católico e que andou pela
África do Sul a tentar converter o povo zulu, pela Áustria e depois pelos
Estados Unidos da América, onde conheceu os métodos da dinâmica de grupo
aplicados por Ruth McClendon e Leslie Kadis.
Aí encontrou então a
sua “janela de oportunidade”, copiando do psicólogo Alfred Adler o termo de
“constelações familiares”. Depois, juntou-lhe algumas teorias da psicoterapeuta
Virgínia Satir, adicionou-lhe as teses dos “campos mórficos” de Rupert
Sheldrake e criou então a referida teoria das constelações, cuja ideia básica
é, afinal, a de que os distúrbios e as doenças são o resultado da transmissão,
de geração em geração, dos conflitos não resolvidos dos nossos antepassados.
Problemas esses que seriam depois resolvidos por exercícios dinâmicos que
envolvem a teatralização com figuras ou com a representação de papéis
pretendendo significar com eles os tais nossos antepassados.
Assim, um agressor violento
não é um criminoso, mas alguém que apenas reflecte um problema não resolvido de
anteriores gerações (como um aborto clandestino feito pela trisavó ou a morte
violenta do tetravô).
Por outro lado, a
concepção patriarcal de família abertamente defendida por Hellinger leva em
linha recta à desculpabilização dos violadores e, nos casos de divórcio ou
separação, à culpabilização da mulher por alegadamente não ter sabido
desempenhar o seu papel.
Dentro desta concepção
ideológica profundamente retrógrada, Hellinger, na sua famigerada palestra
feita em Kyoto em 2001 e publicada em Maio de 2015 por Décio de Oliveira,
explica desta forma o incesto (e “justifica” que o seu autor não deve ser
levado perante a Justiça):
“Se vocês são
confrontados com uma situação de incesto, uma dinâmica muito comum é a de que a
mulher se retira do seu marido e se recusa a cumprir com as suas obrigações
sexuais para com ele. Então, e como um tipo de compensação, uma filha toma o
seu lugar (…). Como você vê, no incesto há dois autores, um na sombra e outro
às claras. Não se consegue resolver o problema a não ser que o perpetrador
escondido venha à luz (…). A filha pode dizer à mãe: Eu faço isso por você. E
ela pode dizer ao seu próprio pai: Eu faço isso pela mãe”[3].
Lê-se, mas já não se
pasma visto que, como vem sendo denunciado por diversos cientistas, entre eles
o Professor da Universidade de Valência Ângelo Fasce, estamos perante teorias
não só sem qualquer respaldo científico e que perpetuam uma visão absolutamente
reacionária e machista da sociedade e da família, como também autêntica
pseudo-ciência e pseudo-terapia, ainda por cima normalmente sustentadas e
aplicadas por pessoas sem quaisquer conhecimentos científicos. E é por isso
que, como a Ordem dos Psicólogos Portugueses acabou de declarar em recente
Parecer sobre as referidas “Constelações Familiares”, estas “não constituem um
modelo terapêutico reconhecido pelas ciências psicológicas” e “não apresentam
enquadramento científico, técnico ou académico, nem sócio-profissional”!
E, todavia, é
exactamente com base neste tipo de enganos, mistificações e falácias que os
Netos de Moura da área da Família e Menores vão impondo “acordos”, absolvendo e
beneficiando os infractores e agressores e violentando ainda mais as já
violentadas e martirizadas vítimas, facilmente acusadas de lançarem a “bomba da
violência doméstica” para desta “tirarem partido”, para citar uma vez mais as
palavras do próprio juiz Joaquim Silva, palavras essas que ganham um ainda
maior significado negativo num ano em que, até 12 de Novembro, já foram
assassinadas 28 mulheres em crimes de violência doméstica e houve mais 27
tentativas de homicídio, de acordo com o relatório preliminar apresentado em 25
de Novembro pelo Observatório das Mulheres Assassinadas (OMA) e pela União de
Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).
E, por outro lado, os
arautos destas atoardas – que estão colocados em muitos lugares-chave da nossa
Justiça, do Centro de Estudos Judiciários ao Conselho Superior da Magistratura
e aos Tribunais – refugiam-se quase sempre em conferências e acções de formação
em que estão sozinhos ou, pelo menos, de que têm o controlo e nunca aceitam vir
travar o debate de ideias, livre e em pé de igualdade.
Aqui fica, pois, o
público desafio lançado aos defensores das teorias da igualdade parental e das
constelações familiares: saiam da sombra, abandonem as vossas áreas de
conforto, prescindam dos vossos poderes e lugares importantes e venham debater
de forma aberta, leal e igual os problemas que aqui enunciei!
António Garcia Pereira
[1] Sugere-se a leitura
do artigo que publiquei a 24/09/2018 sobre este mesmo acórdão e que pode ser
lido aqui: http://www.noticiasonline.eu/quando-os-lobos-julgam/
[2] Sugere-se a leitura
do magnífico artigo de Helena Pereira de Melo, publicado no Jornal Público, e
que pode ser lido aqui:
https://www.publico.pt/2019/11/22/sociedade/opiniao/superior-interesse-cao-escolha-progenitor-convivera-1894255
[3] As várias
barbaridades ditas nesta palestra podem ser lidas aqui: https://constelacaofamiliar.net.br/358-palestra-de-hellinger-em-kyoto-2001/
Nenhum comentário:
Postar um comentário