Cuidado e Cidadania
Texto publicado como
capítulo no livro “Cuidado e Cidadania”, que faz parte da Série sobre o
Conceito do Cuidado de Vulnerável em seus diversos ângulos, Brasil/Portugal.
Introdução:
O Cuidado, conceito psico-jurídico,
embora amplo, refere-se à atitude amorosa e responsável que reza a Cidadania,
neste tomo. Temos um vulnerável, a criança, que precisa receber o cuidado de
qualidade para que ele aceda à cidadania na idade adulta. A Cidadania é um
processo que é construído ao longo do desenvolvimento da criança, depois do
adolescente, para assumir a forma jurídica do convívio em grupos, menores e
maiores, para atingir a sociedade.
O Cuidado é objeto de estudo na
Psicanálise, porquanto como o bebê humano nasce muito incompleto e deficiente
para sua sobrevivência, autores como Bolwby¹, Spitz², Winnicott³, Pâmela4, se
debruçaram sobre a sua necessidade e a importância da sua qualidade.
A vulnerabilidade da criança é um fator
fundamental para este estudo e as consequências que a ausência de cuidado ou o
maltrato, produzem. Assim, Teicher5 nos oferece pesquisas que demonstram
sequelas que advêm de marcas de atrofias de estruturas cerebrais nobres por
exposição ao impacto de estresse extremo, maltrato por abusos físicos e
sexuais, e que são detectadas nas imagens de ressonância magnética, assim como
no exame de Eletro Encéfalo Grama, que vem apontando para uma incidência de um
tipo de epilepsia nestas crianças.
E ainda, a vulnerabilidade da criança
tem especificidades relativas às diversas fases do desenvolvimento cognitivo e
linguístico. Assim o esboço de um código de convívio com o outro irá se
completando à medida que os recursos cognitivos forem se desenvolvendo.
O desenvolvimento será responsável pela
aquisição da capacidade de empatia. É preciso que alguém, afetivamente,
preferencial estimule o processo de aquisição da atitude de se colocar no lugar
do outro. Sem esta aprendizagem a empatia consegue se desenvolver,
suficientemente.
No campo do Direito, Sormani, (6),
quando escreve seu capítulo no livro “A invisibilidade de crianças e mulheres
vítimas da perversidade da lei de alienação parental”, nos chama a atenção para
“o crescente laxismo penal decorrente do falso determinismo sociológico” com a
onda de explicações, em geral psicológicas, para o crime, como se o criminoso
fosse sempre vítima de um sistema sociológico. Acrescento aqui que a
Psicanálise ofertou esta linha de pensamento porque isto faz parte do trabalho
terapêutico, levar o paciente à compreensão de comportamentos que lhe causam
prejuízo de algum tipo. No entanto, isto não se aplica à criminologia, como tem
sido aplicado.
Discussão: Cuidado e Cidadania. Quando a cidadania
será dificultada ou obstruída pela má qualidade do cuidado ou pela sua
ausência, ou substituição por uma perversão perpetrada ao longo da infância?
Precisamos refletir sobre as condições
que preparam a mente da criança para o processo de aquisição de cidadania, que
começa de maneira simples e adquire, gradativamente, complexidade.
A 1ª lei é binária: pode ou não pode. E
é sempre aprendida, majoritariamente pelo “não pode”: não pode bater no outro,
não pode tomar o brinquedo do outro, não pode quebrar alguma coisa do outro. O
“pode” vai sendo aos poucos descoberto, mas quase sempre como limite do “não
pode”. Apesar de muito simples, esta é a
lei que vai reger a cidadania, e o sistema de leis de uma maneira geral.
Mas, para que esta lei simples seja
internalizada, faz-se necessário que todo um arcabouço de regras seja,
ininterruptamente, experimentado. Não se consegue consistência se há variações
de regras, de humores, de figuras parentais transgressoras. Sendo a infância, a
fase em que o desenvolvimento cognitivo e o linguístico, os dois eixos que
dizem respeito à futura cidadania, se fazem apenas e tão somente através da
experiência, só através de um processo coerente de avanço em conceitos
experimentais, levando ao pensamento por operação e não mais por percepção.
Como já assinalamos, o bebê-homem nasce
com muitas incompletudes, que o impelem a ter necessidade de dois alimentos: o
nutricional e o afetivo. O homem nasce muito frágil e com inúmeras dependências
de um adulto que lhe seja especial. O leite e o afeto que lhe são oferecidos
através dos cuidados básicos, são sua única possibilidade de continuar
existindo. O afeto é a fonte fundamental de coesão e estruturação mental
saudável e da saúde como um todo. E o cuidado é a expressão deste afeto de qualidade.
Por isto ele se apega a uma pessoa preferencial que o alimente nestes dois
aspectos. A experiência afetiva com esta pessoa, que depois, gradativamente,
vai sendo multiplicada, permitirá seu pleno desenvolvimento. O afeto como
cuidado tecerá os alicerces de que precisa para crescer. Seu desenvolvimento
cognitivo, pela precariedade de estruturas e suas funções, se dará pela
experiência. Movimentos espasmódicos e repetitivos se selecionam na busca pela
intencionalidade, se combinando de maneira cada vez mais ampla. Por ensaio e
erro o bebê vai aprimorando seus movimentos e conseguindo cada vez mais o
resultado que deseja. A experiência é a base de todo o desenvolvimento
cognitivo.
A primeira fase é o período
sensório-motor, de 0 a 18 meses, o funcionamento é puramente empírico, as
aquisições se sucedem por repetição e depois por combinação de movimentos. É a
intencionalidade experimentada nos movimentos, originalmente, espasmódicos que
atesta o nascimento da inteligência. Repetir o movimento para obter determinada
sensação, tátil, auditiva ou visual. (7.PIAGET)
A infância, portanto, é a fase do
raciocínio concreto. Ou seja, até os 11 anos, mais ou menos, a criança só
consegue raciocinar através da experiência, sempre usando a repetição como critério
de qualidade na aquisição de qualquer conhecimento. O pensamento lógico se
amplia com a possibilidade, a partir dos 11/12 anos, do período das operações
abstratas, para se completar em torno dos 15/16 anos. Só então o adolescente é
capaz de prescindir, totalmente, do estímulo concreto para raciocinar. (8. PIAGET).
O desenvolvimento linguístico também é
embebido de afeto. Os sons se seguem ao choro, única comunicação inicial, e vão
sendo selecionados pela audição dos fonemas da língua-mãe do bebê. As palavras
são afetos ou estados. Palavra-frase, depois as combinações de mais de uma
palavra, como no desenvolvimento cognitivo, são selecionadas por ensaio e erro.
Mas todas as palavras são concretas, experienciais. (9. CHOMSKY).
A memória tem um funcionamento que vai
adquirindo organização ao longo da infância. Nos primeiros anos, dos 03 aos
10/12 anos, as operações mnêmicas vão se tornando cada vez mais precisas. Para
isso a organização no armazenamento/resgate precisa ser repetida à exaustão. De
par com o desenvolvimento cognitivo e linguístico, a memória se expande:
pessoas, objetos, lugares e, por último, tempo. Por isto, uma criança de 3/4
anos é capaz de relatar um abuso sexual sofrido contando quem, como e onde.
Durante toda a infância este processo é investido porque é preciso adquirir uma
boa memória para as exigências da aprendizagem escolar e a aprendizagem
experiencial para a vida. Por isso, a alegação de falsas memórias na infância,
não tem também como se instalar se não há um conhecimento experimental. (10. MAZET/HOUZEL)
O esquecimento, sob a forma de
recalcamento, mecanismo de defesa do ego, entra em ação para evitar a morte
psíquica quando o trauma é muito intenso. O esquecimento/recalcamento é grave,
e muito comum quando a criança não é acreditada e permanece sofrendo um trauma
cumulativo (continuado).
Portanto, o desenvolvimento da criança
está pautado na experiência, no seu mundo concreto que se amplia com a
escolaridade, mas sempre necessitando do que passa pelos seus sentidos. A
experiência de violência, de qualquer ordem, causa uma instabilidade no
organismo em desenvolvimento, acionando o medo como sistema de alerta de
sobrevivência.
Considere-se ainda que em consonância
com o desenvolvimento cognitivo, linguístico e da memória, a sua inserção
social lhe demanda um sistema de regras e leis de convívio, que vai sendo
adquirido ao longo da infância. Através do convívio, primeiro familiar e depois
escolar, também pela experiência concreta, a criança aprende este conjunto de
regras que formará aos poucos seu código de ética, seu código moral, simples
como sua maneira de raciocinar.
É neste terreno, ainda em
desenvolvimento, que ela inicia sua concepção e experiência de Poder. A violência
da transgressão pela violação de seu corpo, embaralha todos os rudimentos
fundamentais de seu código de ética de convivência familiar. Este é um
obstáculo para a boa formação de uma ética e uma moral adequadas à vida de
cidadania. (5. TEICHER).
E o armazenamento de tudo que vai sendo
adquirido por experimentação, vai construindo a memória. Cognição, linguagem,
memória, são feitas das experiências concretas. É preciso pontuar aqui que esta
necessidade de materialidade caminha de par com a enorme capacidade
imaginativa, mas em vetores postos, ou seja, a cognição se amplia em oposição à
capacidade imaginária. De tal maneira que a criança aprende muito cedo a
distinguir o real do imaginário. Aos 3/4anos a criança é capaz de diferenciar a
realidade da fantasia e responder a questões, “quem”, “o que”, “onde”, e aos 4
anos, além destas questões o “quando”, sobre
algo que lhe aconteceu. (11. RIBEIRO, Alves Júnior e Maciel).
A Privação Materna é a primeira das condições
que empurram a criança para a não aquisição da cidadania.
Medo. Sistema de alerta à ameaça de
ordem física, sexual e psicológica, de resposta sistêmica. A única das quatro
angústias básicas do ser humano, desde a época das cavernas, que não foi
solucionada. A fome, o frio, e a dor, angústias que tiveram solução, mesmo que
em se considerando a desigualdade de sistemas econômicos que se instalaram ao
longo dos séculos. No entanto, o medo é a angústia que permanece.
Nós, humanos, nascemos muito
incompletos, com vários sistemas ainda por amadurecer. Se considerarmos os
mamíferos herbívoros como parâmetro, um bebê desta espécie já se põe de pé e dá
os primeiros passos em menos de 20 minutos. Nos mesmos primeiros 20 minutos um
caprino já busca e encontra por si só o alimento preferencial dos mamíferos, o
leite materno.
O medo, a angústia que não conseguimos
“resolver” como as outras, é o mecanismo de alerta, em várias intensidades, que
entra em ação quando se desenha uma ameaça à sobrevivência. Ele tem a função
dupla de proteger a vida e de evitar a morte. Referimo-nos aqui à morte
corporal e à morte psíquica. O medo como defesa tem rápida resposta por estar
implicado na ameaça à vida. Busca a fuga, o enfrentamento com embate, ou a submissão,
como última opção de sobrevivência psíquica.
Mesmo convivendo, com os vários níveis
atuais de morte apontados pela Ciência, que incluem até o que a Medicina
denomina de zona cinzenta, estados de coma irreversíveis, com morte relativa a
determinados conceitos de funções vitais, faz-se necessário refletir sobre a
morte psíquica, e seus vários estados, por vezes, também irreversíveis, mesmo
que a vida biológica se mantenha. A exposição continuada ao impacto do extremo
estresse produz repercussões psicopatológicas da ordem do estresse pós-traumático
deixado nos soldados que foram à guerra. Quando a guerra era, essencialmente, a
exposição à morte e às mortes. As
conhecidas “neuroses de guerra”, que abrangiam desde uma leve irritabilidade
com certos ruídos, até quadros persecutórios invalidantes, têm correspondência
nas sequelas instaladas nas crianças que sofrem abuso sexual incestuoso.
O neologismo alienação parental, entre
nós, transformado em lei, conjuga Violência, Poder e Medo. É a nova forma de
violência contra a mulher e a criança, é a vivência do Poder que esmaga a
vulnerabilidade, é a prática da exacerbação da sensação de medo agudo que se
torna crônico. Cunhado com o propósito de defender pedófilos/ofensores,
promovendo a perda de guarda da mãe e seu afastamento, com o rompimento da vida
da criança, tem efeitos deletérios pela sua característica predadora de afeto,
de continuidade, e, sobretudo, de adversidade nefasta da maturação de
estruturas e funções cerebrais, desrespeitando assim o desenvolvimento
infantil. Como preceito dogmático, a perda da guarda da mãe por alegação da
prática de alienação parental, avançou sobre a advertência e a multa, previstas
na lei, e se tornou protagonista, e, com celeridade espantosa.
É do conhecimento de especialistas e
também de leigos que maus tratos físicos, sexuais e emocionais, durante o
desenvolvimento infantil, tenham relação com dificuldades emocionais e
problemas psiquiátricos na vida adulta. O sistema límbico responde por esta
função de processar as emoções. No entanto, estudos e pesquisas, (TEICHER, M.
H.) evidenciam que não se restringe ao desenvolvimento psicológico apenas. Não
muito difícil de entender, os abusos sexuais intrafamiliares perpetrados a uma
criança, também danificam estruturas e funções cerebrais que estão em desenvolvimento.
O ingrediente Medo, protagonista do
impacto do extremo estresse que ocorre na vivência do abuso, é apontado como
relacionado à atrofia de estruturas cerebrais, tais como o hemisfério esquerdo,
o hipocampo e a amígdala, e a já conhecida relação com o sistema límbico,
apontado como responsável pelo processamento das emoções. O hipocampo é tido
como de importância na função da memória verbal e na memória emocional. A
amígdala está relacionada ao conteúdo emocional da memória, principalmente sentimentos
de medo e reações agressivas. Violência e medo parecem emanar da mesma
estrutura cerebral. E, como o corpo da criança está em crescimento, faz-se
necessário considerar que este crescimento sofre alterações de hipertrofia ou
de atrofia fisiológica, o que acarreta alteração da função que esta estrutura
exerce.
Se, a principal função da amígdala é
filtrar e interpretar informações relacionadas com a sobrevivência e
necessidades emocionais prementes do indivíduo, o que desencadeia as reações agressivas
por proteção e preservação da vida, temos o medo protagonizando a resposta ao
impacto de extremo estresse. E, na sequência, a violência reativa.
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