Quando a gente ama, a gente
cuida
Foi com prazer que ouvi magistrados pensarem o cuidado e o afeto como
valores jurídicos na Jornada promovida pela EMERJ (Escola de Magistratura do
TJ/RJ), no último dia 29 de setembro. Como não houve oportunidade de colocar
algumas questões nesta ocasião, gostaria de expor alguns pontos que são
oriundos da conjugação do exercício profissional de mais de 30 anos da minha
formação como psicanalista de criança e de adolescente, com a atividade mais
recente de assistente técnica de vários processos desta área jurídica, além do
trabalho nos últimos 12 anos junto a ABRAPIA, organização não governamental
dedicada à proteção de crianças e adolescentes.
Conceitos psicológicos fundamentais foram adquiridos nestes, últimos
tempos, pelos Advogados, Promotores, e Juízes de Varas da Infância e Juventude
e de Família, garantindo às crianças e aos adolescentes o convívio com os
elementos familiares essenciais que estão na estrutura de formação da
mente humana e de sua personalidade.
Sabemos hoje que a participação do pai desde o início do desenvolvimento
de uma criança tem importância na aquisição de sua identidade de gênero, mesmo
quando esta criança é uma menina e ainda é muito pequena. Sabemos também que
uma união rompida não deve desfazer os laços familiares entre pais e filhos, e,
quando novas uniões destes pais surgem, a justiça tem garantido a permanência
destes laços.
No entanto, parece que estes conceitos se transformaram em “mitos
familiares” que tem ocasionado distorções danosas para o desenvolvimento
psicológico de muitas crianças e adolescentes,
comprometendo assim a sua saúde emocional. Refiro-me aqui à consagração
dos conceitos “mãe” e “pai”. O famoso
“instinto materno” que justifica a permanência da criança ao lado de “mães” que
só tem direito ao título biológico, independente de tê-lo sido por um acidente
da natureza ou por excessivo desejo de sê-lo.
A maternidade é uma das etapas do
“processo de maternalidade” que acompanha a mulher por toda sua vida tendo ela
filhos ou não. Este conceito introduzido pelo psicanalista francês Jean-Paul
Racamier, nos auxilia a compreender
melhor a constatação de que muitas mulheres não exercem a função de mãe logo
depois da maternidade, e algumas, em nenhum momento da vida. Tornar-se mãe não
é compulsório, nem instintivo. É uma possibilidade afetiva, e como tal vai
depender da experiência vivida como filha e da rede de identificações positivas
e construtivas que estruturaram a sua própria afetividade. Além disso, muitas
mulheres tentam se sentir “mãe” assumindo a posse do filho através do seu
corpo: “saiu de mim, é meu”. E, se escondendo atrás da “explicação” de corretivo,
ocupam o primeiro lugar nas estatísticas de denúncias de violência física com o
índice de 52% praticada por elas, as mães, contra 24% praticadas pelos pais, 8% por padrastos,
13% por outros parentes e 3% por não-parentes. Como afirmamos no artigo
“Violência e Afeto” publicado no editorial do Jornal “O Globo” de 20 de
fevereiro de 2006, se acrescentarmos as “palmadas moderadas educativas” a estes
índices obtidos com base em denúncias, alcançaremos alarmantes escores de 70% a
80% de mães batendo em seus filhos, exercendo o papel de posse, e não cumprindo
a necessária função de mãe. A violência da questão da criança abrigada trazida
na Jornada pelo Promotor Sávio Renato Bittencourt (MP/RJ), que, com tanto
cuidado e afeto, convocou o judiciário a ter um olhar quantitativa e
qualitativamente mais efetivo. Na verdade, há poucos abrigos oficializados, se
considerarmos o enorme número de crianças e adolescentes “abrigados” em seus
próprios lares, sem nenhuma assistência, cuidado, ou direito, perfazendo dois
grandes grupos: os que possuem computador e os que não possuem.
A qualidade das relações afetivas intra-familiares vem se degradando e
vínculos se tornaram, em grande parte, descartáveis. Quantas vezes nos
deparamos com a utilização perversa de uma criança pela sua mãe como arma para
vingança pessoal ou como moeda para obtenção de “conforto financeiro” próprio.
Seria longa a lista de situações de abuso físico, sexual e psicológico
praticado contra a criança e o adolescente. Assim, devemos ter muito cuidado ao
afirmarmos, automaticamente, que toda criança precisa ficar com a mãe. Toda
criança precisa de mãe, mas nem sempre da sua mãe. Uma mulher pode até ser uma
boa mãe operacional, (limpar, alimentar e colocar no berço para dormir), e, no
entanto, não conseguir ser uma mãe, saudavelmente, afetiva e cuidadosa. Exercer
a função de mãe não é a mesma coisa que executar tarefas. Muitas mulheres não
conseguem nem mesmo operacionalizar seu papel de “mãe”. Por exemplo: existem
meninas muito danificadas, psiquicamente, pela permanência ao lado da mãe,
portadora de distúrbios afetivos graves, porque foram obrigadas a cuidar de
suas mães desde a infância, alimentando-as, dando banhos, tentando impor
limites às mães, desculpando-as e perdoando-as, numa inversão de papéis, o que
determina um enorme custo emocional de muito longo prazo, pois que esta
inversão aconteceu durante o período do desenvolvimento. Ou seja, a ausência da
proteção necessária junto a uma demanda da função protetora exercida precoce e
inadequadamente, antes de haver a menor condição para tal, causando, na maioria
das vezes, deformações emocionais e afetivas que as acompanham para sempre.
Por outro lado, o mito de que a presença do pai é indispensável para o
desenvolvimento da criança, nos coloca diante de outra distorção: pais que
abusaram sexualmente de um filho ou filha tem um convívio garantido
judicialmente pela visita supervisionada. É preciso pensar que a importância do
pai, aquele que assim se comporta, no desenvolvimento da criança está correta,
mas um pai que usou o corpo de seu filho/a para obter prazer sexual de qualquer
tipo, abriu mão de sua função de pai, atacou e destruiu a mente da criança
através da ilusão de posse do corpo dela para satisfação concreta de sua
perversão. Sua simples presença no ambiente, é imensamente perturbadora para a
criança e a empurra à dolorosa revitimização, pois, não tendo sido protegida de
sua perversão, não confia em nenhum adulto como protetor até que seja
restaurado o vasto estrago psicológico causado pelo abuso ocorrido. Poderia
também listar as dores e desesperos de crianças e mães ou pais na luta pela não
visitação supervisionada, até que a própria criança se sinta capaz de estar no
mesmo ambiente que o abusador/a. Em alguns casos, o desespero é tamanho que se
tornar “fugitivas”, criança e mãe, foi a decisão tomada diante da impotência de
serem ouvidas, principalmente, no pânico produzido pela determinação judicial
da visitação supervisionada. A destituição do Poder Familiar é outro ponto
mitológico. Processos se arrastam por quase 10 anos, com a vítima sendo chamada
em audiências repetitivas para contar tudo de novo, porque agora elas já
cresceram. Mas a criança logo aprende ao longo desta saga que não adianta
repetir aquela história para vários Juízes porque não vai haver a condenação
por crime de abuso sexual, e perde a esperança nos adultos e em sua justiça.
Prisões também são muito raras, não encontramos seus registros, porque parece
haver um medo do judiciário de condenação à “pena de morte”, já que este é um
crime não tolerado pela população carcerária e suas “leis”. Então, desta
maneira, é a criança ou adolescente é o único que custeia este adiamento ad
eternum do julgamento de um fato que povoa sua mente assaltada na sua
necessidade de paz, cotidianamente, pela dor do medo e da impotência, e pela
raiva da impunidade. Portanto, estamos colaborando para mais uma deformação
psicológica, porquanto não podemos esperar que a vitimização e suas
conseqüentes revitimizações neste cenário, venham a produzir mentes saudáveis.
Abusado ontem, abusador hoje ou amanhã. Este é um risco já demonstrado por
estudos e pesquisas, vide o processo por pedofilia de Angers, França, em
julgamento público em maio de 2005, talvez o maior que se tenha notícia, com 45
vítimas de 6 meses a 12 anos, abusadas por pais, mães, irmãos mais velhos,
tios, primos, que por sua vez tinham sido abusados pelos avôs e tios-avôs,
formando uma enorme rede de compulsão à repetição.
Por tudo isso, nós temos certeza que podemos e devemos comemorar, a
primeira sentença que contemplou recentemente a visitação de um pai
sócio-afetivo, atestando assim a capacidade de um entendimento da importância
do vínculo afetivo no desenvolvimento de uma criança. Este é um marco muito
importante porque a sobrevivência psíquica transborda compromissos pecuniários
de sobrevivência corporal, igualmente importante. O homem nasce muito frágil e
com inúmeras dependências de um adulto que lhe seja especial. A sua necessidade
de alimento, leite e afeto que lhe são oferecidos através dos cuidados básicos,
são sua única possibilidade de continuar existindo. O quadro de hospitalismo,
descrito por René Spitz, comprova que a privação de afeto pode levar um bebê
atendido em suas necessidades básicas, do ponto de vista da alimentação e
higiene, à morte, como o autor bem observou. O Apego, comportamento teorizado
por John Bowlby, pode ser observado no comportamento dos bebês de se agarrar e
escalar o corpo do adulto quando são segurados no colo. A segurança vem do
amparo físico e aconchego recebidos. O afeto, também necessidade básica para o
bebê, é a fonte fundamental de coesão e estruturação mental saudável. O cuidado
é, pois, a expressão deste afeto de qualidade.
Considerando, pois, a prática acumulada
durante todos estes anos, trabalhando com os danos causados pela privação maior
ou menor de cuidado e afeto, numa espécie de oficina da arte de restaurar o
mundo interno, de tantos pacientinhos, e somando a experiência mais recente de
acompanhar processos como assistente técnica, infelizmente, posso afirmar que,
se o infanticídio foi tolerado até o século XVII, temos que reconhecer que hoje
há uma espécie de infanticídio psicológico que todos permitimos com nossas
omissões, com a obediência a mitos, enfim, com a deficiência e a falta de
cuidado com nossas crianças e adolescentes. Por isto, do meu prazer de ouvir
magistrados, numa sexta-feira, pensarem o cuidado e o afeto como valores
jurídicos.
Rio
de Janeiro, 11 de outubro de 2006.
Ana
Maria Iencarelli.
<anaiencarelli@rionet.com.br> (este email está desativado há alguns anos)
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