Infanticídio: quem ama, cuida
A inclusão do afeto e do cuidado como
valores jurídicos é de fundamental importância para a saúde de nossas crianças
e vem juntar-se ao Projeto de Lei nº 2654-03 sobre a interdição da punição
física de crianças e adolescentes.
Conceitos psicológicos fundamentais
foram adquiridos nestes, últimos tempos, pelos Advogados, Promotores, e Juízes
de Varas de Família, garantindo às crianças e aos adolescentes o convívio com
os elementos familiares essenciais que estão na estrutura de formação da mente
humana. Sabemos hoje que a participação do pai desde o início da vida de uma
criança tem importância para seu desenvolvimento. Sabemos também que uma união
rompida não deve desfazer os laços familiares entre pais e filhos, e, quando
novas uniões destes pais surgem, a justiça tem garantido a permanência destes
laços.
No entanto, parece que estes conceitos
se transformaram em “mitos familiares” que tem ocasionado distorções danosas
para o desenvolvimento psicológico de muitas crianças e adolescentes, comprometendo
assim a sua saúde física e emocional. Refiro-me aqui à consagração dos conceitos “mãe” e “pai”. O famoso “instinto
materno” que justifica a permanência da criança ao lado de “mães” que só tem o
título biológico. Tornar-se mãe não é compulsório, nem instintivo. É uma
possibilidade afetiva, e como tal vai depender da experiência vivida como filha
e da rede de identificações positivas e construtivas que estruturaram a sua afetividade.
Muitas mulheres tentam se sentir “mãe” assumindo a posse do filho através do
seu corpo: “saiu de mim, é meu”. E, se escondendo atrás da “explicação” de
corretivo, ocupam o primeiro lugar nas estatísticas de denúncias de violência
física com o índice de 52% praticada por elas, as mães, contra 24% praticadas
pelos pais, 8% por padrastos. Temos 84% num triste total. Como afirmamos no
artigo “Violência e Afeto”, publicado em fevereiro de 2006, se acrescentarmos
as “palmadas moderadas educativas” a estes índices baseados em denúncias,
alcançaremos alarmantes escores. Todo espancamento começou por uma palmada.
A qualidade das relações afetivas intra-familiares
se degradaram e vínculos se tornaram, em grande parte, descartáveis. Devemos
ter muito cuidado ao afirmarmos, automaticamente, que toda criança precisa ficar
com a mãe. Toda criança precisa de mãe, mas nem sempre da sua mãe.
O mito de que a presença do pai é
indispensável para o desenvolvimento da criança, nos coloca diante de outra
distorção: pais que abusaram sexualmente de um filho ou filha tem um convívio
garantido judicialmente pela visita supervisionada. É preciso pensar que a
importância do pai, aquele que assim se comporta, no desenvolvimento da criança
está correta, mas um pai que usou o corpo de seu filho/a para obter um prazer
sexual, abriu mão de sua função de pai, atacou e destruiu a mente da criança através
de posse do corpo dela para satisfação concreta de sua perversão. A agressão
física como desculpa educativa não passa da busca do prazer infantil de um
pequeno poder em relação a um mais fraco. A compulsão à repetição é selada pela
aquisição da relação algoz-vítima que se inverterá na idade adulta:
negligenciado hoje, negligente amanhã, abusado hoje, abusador amanhã, espancado
hoje, espancador amanhã.
A
sobrevivência psíquica transborda compromissos pecuniários de sobrevivência
corporal. O homem nasce muito frágil e com inúmeras dependências de um adulto
que lhe seja especial. O leite e o afeto que lhe são oferecidos através dos cuidados
básicos, são sua única possibilidade de continuar existindo. O afeto é a fonte
fundamental de coesão e estruturação mental saudável e da saúde como um todo. E
o cuidado é a expressão deste afeto de qualidade.
O infanticídio foi tolerado até o
século XVII. Mas temos que reconhecer
que hoje praticamos o infanticídio psicológico quando pais espancam seus
filhos, meninas ficam presas em cela com detidos adultos, crianças se
prostituem em nossas orlas, meninos são aliciados por sites de pedofilia,
meninas são torturadas pela “mãe”, menino é esquartejado pelas ruas sem lei,
crianças são jogadas pela janela, bebês são jogados contra a parede ou afogados
em lagoas ou morrem de dengue, situações perversas de abandono, negligência e
violência, de descuido e desafeto, que nós, pais, professores, políticos,
instituições, mídia, permitimos com nossas omissões, com a obediência a mitos,
com a falta de tempo e de responsabilidade. Porque se um morre, fica o medo de
ser o próximo.
Citando a poesia de Débora Duarte diante
de sua primeira maternidade:
... “ Entre espanto e medo
Me
irrito e enterneço ante tua dependência passiva...
Te desejo
Tenho medo do poder de te matar”...
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