ABUSO
SEXUAL
Uma
tatuagem na alma de meninos e meninas
Pensamento Mali:
“o
melhor caminho entre um ponto A e um ponto B não é
uma
reta, é um sonho”
O infanticídio foi tolerado até o Século
XVII. Os pais podiam, se assim decidissem, colocar seus filhos acorrentados, em
masmorras, espancá-los também em público, e até matá-los, sem precisar dar
satisfação a ninguém, porque aqueles filhos haviam desobedecido, ou eram
portadores de alguma característica insuportável para eles pais. Tinham a posse
e o destino dos filhos dependentes. Hoje, o infanticídio não é mais tolerado,
mas continua a ser praticado. Isabela, Joana e Bernardo são emblemáticos. E
continuará. A perversão com as crias só acontece em humanos.
A interdição ao incesto é o marco do
processo civilizatório da humanidade. Mas, prosseguimos sendo sub-animais.
Richard Gardner, criador do conceito de
Alienação Parental, era um psiquiatra que fazia trabalho não pago na
Universidade de Columbia, como voluntário. Seus pareceres para processos
judiciais, ele assinava como Professor, título que lhe foi ofertado, em
cortesia, pela própria Universidade.
Gardner criou as suas teses para defender
acusados de violência contra mulheres e/ou de abuso sexual de filhos e filhas.
Fez sua carreira profissional, como perito, defendendo homens acusados de
abusar sexualmente de crianças, através da estratégia de desacreditar as
vítimas, para inverter as posições, transformando o acusado em vítima. ( Barea
Payueta/ Sônia Vaccaro, “El Pretendido Síndrome de Alienatión Parental,
Editoria Desclée de Brouwer, 2009, p. 168 ).
Em
seu livro “True and False Accusation of Child Sex Abuse”, 19992, pp. 24-25,
Gardner escreve: “as at’ividades sexuais entre adultos e crianças são parte do
repertório natural da atividade sexual humana, uma prática positiva para a
procriação, porque a pedofilia estimula sexualmente a criança, torna-a muito
sexualizada e a faz ansiar pelas experiências sexuais que redundarão num
aumento de procriação”.
Assim, se o
incesto é normalizado, não é visto como abuso sexual, sendo até recomendado por
ele como benéfico para a criança, para o adulto, para a humanidade, a Alienação
Parental justificada, ou seja, aquela que advém da situação da descoberta do
abuso e consequente indignação e busca de afastamento para proteção da criança,
se tornou também entre nós, “prova de alienação praticada pela mãe”. Hoje, com
o incentivo à denúncia, o número de mães denunciantes se aproxima do número da
mães que descobrem e se calam para sempre. Este grupo, a mim me parece, será
sempre maior pelo uso de mecanismos típicos dos processos de identificação, e
não se ttem a possibilidade de sabê-lo numericamente.
A busca de proteção pelo afastamento do
pai abusador, uma tentativa da mãe de evitar o contato sexual do pai com a
filha que, segundo a tese de Gardner dos benefícios do abuso sexual incestuoso,
está lesando a sobrevivência da espécie. (Jennifer Hoult, “The Evidentiary Admissibility of
Parental Alienation Syndrome, Science, Law and Policy, 2006, p.19). Assim,
a mãe é que está cometendo o crime, Lei 12.380/2010. Esclareço, escrevi apenas
com a filha porque até o momento os meninos não se beneficiariam porque ainda
não podem engravidar e práticas sexuais entre dois indivíduos do mesmo gênero
masculino não conseguem implicar em procriação. Fica evidente o caráter sexista
em modelo de supremacia do macho, dono da família. A estratégia de Gardner vem
patrocinando um aumento vertiginoso de criminalização de mães protetoras pela
falsa acusação de Alienação Parental feita por pais abusadores.
“É
enorme o aumento de Processos de denúncias de abuso sexual de crianças, todas mães,
que atribuem a autoria ao pai. Graças a Deus, 100% é alienação parental das
mães. Nenhuma é abuso sexual.” Afirmação de Juíza de Vara de Família.
As falsas alegações de Alienação Parental
feitas por pais abusadores, tem se proliferado em escalas assustadoras, se
considerarmos as vítimas. Criminalizada, a Alienação Parental tem poucas
possibilidades de prova, e hoje, como “pérola da vez”, se baseia tão somente na
auto vitimizada alegação sem averiguação, apesar de haver criteriosa listagem
de condutas bem elencadas por Rolf Madaleno, entre nós. Para transformar uma
falsa alegação em “uma verdade”, os pais abusadores engendram a autoalienação
com manobras, calculadamente, arquitetadas. Abusadores são perversos, são
exímios manipuladores e fingidores. Muito fácil para eles montar esta inversão.
Estes falsos comportamentos tem sido um sucesso judicial. Os Operadores de
Justiça não estão habilitados a reconhecer esta ardilosa psicopatologia. Que, a
nós, especialistas em doenças mentais, eles também enganam.
É claro que Alienação Parental existe,
por parte da mãe e do pai, e é nociva ao desenvolvimento saudável da criança.
As mágoas e ressentimentos, justificados ou enquanto sintomas narcísicos, acontecem após o término de uma relação
amorosa. É um processo de luto, e como tal, tem seu tempo para ser processado
naturalmente. Maria Clara Sottomayor em seu “Temas de Direito das Crianças”,
considera um erro a criminalização da Alienação Parental, que, para ela, só
traz o acirramento de afetos ressentidos, porque não espera o tempo do luto.
Essa criminalização deste comportamento inadequado, mas natural, empurra as
famílias para a falsificação, acrescida da obrigatoriedade da Guarda
Compartilhada, Lei 13.058/2014, obrigatória até nos processos de separação
litigiosa, engendrando assim a produção
do falso self.
A
tatuagem na alma de meninos e meninas.
A revelação ou a descoberta, quase sempre
ocorre por acaso porque este crime não deixa nenhum rastro. A ocultação das
práticas sexuais é objeto de cuidado meticuloso e calculado do abusador. O
núcleo familiar sofre um tissunami que não tem fim. A primeira atitude, que
parte de algum ou de alguns membros da família, incluindo a mãe, é duvidar da
criança ou adolescente. A culpa da invasão de lama e destroços é da criança que
revela. Mesmo quando não é dita uma frase que indaga por que ela resolveu falar
agora, estragar tudo, há esta cobrança implícita. Como se ao vitimado coubesse
a missão de guardar para sempre este segredo que combinou com seu agressor.
Este golpe é muito danoso e fere profundamente. Depois de vários adiamentos, de
vários ensaios de como falar, rasgando por dentro o túmulo do segredo, eis que
apenas duvidam, reduzindo a pó todo o seu esforço de quebrar o pesadelo do
segredo. A culpa transborda e a almejada paz não é alcançada. Ao contrário, a
aflição aumenta, além do tormento da permanente lembrança torturante do abuso,
a revelação traz ao vivo todo um sistema de insegurança pelo descrédito que
paira sobre aquele que revela. Agora, são duas as dores: a culpa multiplicada e
o descrédito do entorno.
“eu
tenho pena do meu pai e me sinto traindo ele porque falei prá ele e prá minha
mãe do abuso, Ele só tinha a mim para dar aquele amor agora eu quebrei o que
prometi prá ele”. Mulher de 28 anos que revelou para os
pais sobre os abusos dele na sua infância e adolescência.
Pouco se sabe sobre as consequências do
abuso na aprendizagem. Não é difícil refletir sobre o distúrbio da atenção, por
exemplo. A concentração para manter secreto o abuso opera uma cisão com o
mundo, uma equivalência de um quadro de autismo. A atividade escolar que
pretende sempre aumentar o tempo de concentração da criança estimulando seu
desenvolvimento cognitivo é uma sobrecarga de difícil coordenação nesta demanda
de atenção. A criança ainda não tem os recursos suficientes para organizar e administrar duas concentrações ao
mesmo tempo.
Além disso, toda a escolaridade
fundamental está baseada no certo e no errado, no falso e no verdadeiro, e
perde o sentido, mais que isso, se tornando esquizofrênica em seu caráter
cindido. A criança sae que o errado é certo naquele segredo que mantem com o
abusador. Mas fora da cena, ele mesmo a repreendem muitas vezes com rigor para
manter sua intimidação e sua posição familiar e social de “correto”.
“passei
minha infância sendo expulso da sala de aula, mas tirando notas altas, não era
burro só não conseguia prestar atenção e bancava o engraçado para ser gostado,
sempre me senti rejeitado por todos, meu pai dizia que fazia aquilo comigo
porque ninguém gostava de mim, só ele”. Homem de 22 anos,
abusado pelo pai na infância, cuja mãe foi afastada do filho e teve a inversão
de guarda, foi acusada de falsidade ideológica pela denúncia de abuso que fez.
A memória também é atingida. A criança tem
que passar todo o seu tempo lembrando que tem que esquecer a lembrança, e
lembrando que tem que lembrar para ocultar perfeitamente. O que sobra para a
memorização da aprendizagem?
A sensação de falsificação contínua, com a
aprendizagem da mentira e sua culpa, afeta a formação da identidade. O segredo
culposo que a criança carrega durante seu desenvolvimento, produzirá uma
obstrução, maior ou menor, mas sempre presente, no processo de formação da
identidade. Estas crianças crescem sem saber quem elas são. Encontramos os
adultos tatuados pelo abuso com a personalidade “como se”, o falso self, sem
capacidade de se reconhecer, de saber quem são.
“Eu
não sei quem sou eu, tenho sempre dúvida a meu respeito. E abandono tudo que
começo, porque estou sempre achando que não é para mim, que não vou ser capaz,
até no trabalho isso fica muito claro, tenho uma especialidade, mas se chega
alguém eu deixo a pessoa fazer o que é de minha competência, mesmo que ela nem
saiba fazer.” Homem de 38 anos que foi abusado pelo
pai na infância e desacreditado pela mãe quando revelou o abuso.
O tempo, sua noção, sua função, são também
atingidos. As sequências de ausência quase autística, das noites, manhãs ou
tardes de espera pelo momento pleno de adrenalina em que o abusador ia dar
início a suas práticas libidinosas, aquele vazio transbordante, o silêncio
ensurdecedor dentro da mente, causam um distúrbio de boa utilização do tempo.
Escutar uma criança que está contando que
está sendo abusada por alguém da família, não é tarefa nem um pouco fácil. As
crianças costumam “falar” de diversas maneiras, encenar na brincadeira, e
algumas vezes, quando tem uma pessoa de referência de muita confiança até contar
em palavras. No entanto, a dificuldade do adulto de escutar uma revelação é
enorme, estendendo-se esta surdez até aos profissionais especializados. Poucos
conseguem transpor a desorganização interna que, imediatamente, se instala,
causada por uma informação desta. Assim, até hoje, com todos os estudos e as
evidências da necessidade da Escuta Especial, ou das Salas de Depoimento Sem
Dano, as Salas de D.S.D., continuamos encontrando profissionais referendados
pela Justiça, que pensam possuir um “olhômetro” de alta precisão, e praticam a
pré-histórica e traumática Acareação, tão usada nos fundos de delegacias quando
há um psicopata negando um crime, praticada por pessoas que se acreditam possuidoras
de detectores de mentira. A Acareação de uma criança com seu suposto/denunciado
abusador é uma violência sexual, uma revitimização, que tem sido cometida em
pretensas perícias psicológicas.
A estimulação por carícias, manipulações,
ou penetrações, estas muito menos frequentes, no entanto, mostrando um aumento
de ocorrência que atribuo à crescente cultura da transgressão sem punição, e às
novas coberturas judiciais deferidas a favor dos abusadores, esta estimulação
rompe a infância e promove um desenvolvimento sexual precoce. A perversão da
sexualidade infantilizada de um adulto abusador, imposta, precocemente, à
criança, opera uma bifurcação em seu desenvolvimento: a hipossexualidade, e a
hipersexualidade. Pelo teor traumático, para evitar a morte psíquica, são
acionados mecanismos de defesa do ego que tentam minimizar a sexualidade brutal
naquele momento. Negar, ou, ao contrário, banalizar e minimizar, são posturas
psicológicas buscadas para a proteção da mente.
A hipossexualidade pode lançar mão de
alterações corporais para excluir atrativos estéticos externos. A obesidade e a
anorexia estariam nesta categoria. O objetivo por trás da deformação e feiura
do corpo é obstruir a possibilidade do
olhar de desejo do outro.
A hipersexualidade teria a função de
banalizar, de esvaziar a importância sexual do terror do abuso. Os
comportamentos de promiscuidade, a prostituição, e os comportamentos de
predadores e predadoras sexuais, são exemplo deste mecanismo de defesa, que,
por vezes traz em seu bojo a equivalência de vingança desejada e reprimida,
então deslocada e generalizada para todos, homens e mulheres, praticada,
indiscriminadamente, sem nenhuma culpa. È a descrença afetiva no outro, outra
sequela da vítima de abuso.
O corpo pode se tornar palco de
sexualidade ou de não sexualidade, mas também pode se tornar arena de ataques
de vingança, mais precisamente, de autovingança. É muito frequente que a
negligência se faça neste corpo violado, afinal, ele não vale mais nada porque
sujo. Para além da negligência expressa em várias formas, também os
comportamentos de pequeno, médio e alto risco tem o corpo como alvo. Acidentes
frequentes, e até a morte por suicídio voluntário ou “acidental”, são a
expressão da tentativa de se livrar do corpo maldito, como é vivido. Às vezes,
é preciso matar este corpo para se livrar da dor permanente insuportável que
ele causa à mente.
O medo é uma característica em crianças e
adolescentes abusados, e adultos sobreviventes do abuso incestuoso. Pela
sensação de sujeira, pela culpa, pelo sistema de humilhação estabelecido, pela
intimidação feita pelo abusador, a vítima de abuso permanece neste ponto de
estresse basal, acompanhado sempre pelo distúrbio da autoestima. A dúvida
plantada em sua mente, por vários fatores decorrentes da falta de prova, sobre
a veracidade do fato do abuso, se derrama por todas as áreas psíquicas, tornando-se
a dúvida generalizada de todas as capacidades cognitivas e afetivas. Assim,
crianças e adolescentes vítimas, e adultos sobreviventes, são inseguros. A
vulnerabilidade infantil inicial se cristaliza, a dependência ao outro é
intensa como na infância. A autonomia psicológica fica impedida de se
desenvolver.
A imposição familiar, social, e hoje,
judicial, de convívio com o abusador é responsável pela manutenção de todas as
sequelas causadas pelo abuso. Assim, é banida a possibilidade de regeneração do
tecido psíquico dilacerado pela continuidade da exposição à situação traumática
nesta exigência equivocada de convívio. É
como se vítimas do holocausto tivessem que morar para sempre no campo de
concentração em que foram torturadas.
O desânimo, a desesperança, são as únicas sensações na mente ressecada. E,
acontece a desistência que tudo inunda.
“Meu
pai frequentou minha cama desde que eu era pequena,não sei quantos anos eu tinha,
parece que sempre. Nada adiantava. Casei duas vezes, não deu certo. Voltava.
Depois que me separei, desisti, e deixava ele fazer o que quisesse com meu
corpo, até dormia, e no outro dia via na minha vagina que ele tinha tido prazer
sexual”. Mulher de 28 anos falando de sua desistência.
O medo de enlouquecer. Segredos de abuso,
quando revelados após muitos anos, desencadeiam uma sequência no pacto da cisão
que foi rompida com esta revelação. Sedimentada pelo tempo e pelo aprimoramento
permanente desta ocultação, o abuso sexual intrafamiliar, a revelação tardia
opera nova fenda na mente: a cena do abuso passa a ser apenas a sequência das
palavras reveladoras, descoladas da emoção das cenas abusivas. Agora adulto, o
sobrevivente do abuso se vê olhando um filme do que relata, e as palavras são
repetidas e duvidadas da sua veracidade. Este é um fenômeno psíquico de graves
consequências, pois resta como forte sensação de enlouquecimento. As palavras
são vazias de emoção e as imagens fogem da mente e ficam muito difíceis de serem
resgatadas. O resultado é que a emoção ressurge em intensos ataques de
apreensão, angústia, medo, agonia, desespero. Intensidade extrema e ausência
total de algum mínimo sentido aparente. O vazio pleno da situação traumática do
abuso reaparece nestas crises que se assemelham ao estado de pré-surto
psicótico.
“o
incrível é que os ataques de ansiedade que me invadem, aparecem quando acontecem
coisas boas, vem um pânico horrível, com coisa ruim nunca tive”. Mulher
de 51 anos, abusada pelo pai durante toda a infância, e que revelou para a mãe
aos 12 anos, a mãe ouviu em silêncio e a levou para a psicóloga, mas nada mudou
na casa que continuou mergulhada no silêncio do incesto.
Talvez as sequelas possam ser pensadas em
sua dimensão devastadora como montando um sistema familiar incestuoso fechado,
ao qual a criança não tem acesso. Impresso em seu âmago, cristalizado, este
sistema fica no modo de funcionamento automático, ou seja, toda nova
possibilidade de relação cai no circuito fechado do sistema incestuoso: prazer
com gosto de pecado, fidelidade à transgressão.
Este sistema familiar incestuoso que
abriga e acoberta o crime do abuso sexual dentro da família, tem hoje um
correlato praticado pela Justiça. Operadores, ávidos por ampliar sua atuação
para dentro da família, legislando as velhas e novas relações interpessoais e
amorosas, tem se precipitado em novas modas sentenciais, a Alienação Parental
neste momento, o que tem patrocinado a mumificação de mães que buscam proteção
para um filho ou filha abusado/abusada pelo pai, jogando o manto da Justiça
sobre o abusador que muito tem se beneficiado. Assim o sistema incestuoso,
apesar de toda precisão e força da letra da Lei, vem se tornando inimputável na
prática.
Estas são algumas consequências nocivas,
negligenciadas por quase todos nós, desta tatuagem na alma de meninos e
meninas, que se torna uma sombra social.
Artigo apresentado no 1º
Fórum Municipal Contra Violências - Prefeitura de Macaé -RJ
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