MORADA
NO INFERNO DE UM POVO SITIADO
J.R. Guzzo, é jornalista, escreveu o
artigo “Descida ao inferno”, publicado na Revista Veja edição 2341, de 02 de
outubro de 2013. Rodrigo Constantino é economista, escreveu “Delírios de um
povo sitiado”, publicado no Jornal O Globo de 01/10/2013. Em tempos próximos,
por caminhos diversos, ambos tocam no inferno interno da tortura do abuso
sexual em crianças e adolescentes, praticada diariamente nos lares brasileiros.
Constantino, na expectativa de sua participação no evento Oriente Médio: Crise
e Esperança, traz a tese de Kenneth Levin, que buscou em Anna Freud parte da
explicação das questões do fracasso da Primavera Árabe. O comportamento das
crianças abusadas ilustra claramente o mecanismo de defesa a criança se sente
culpada, e, diante de um inimigo imbatível, junte-se a ele. A identificação com
o agressor, mecanismo de defesa do ego, tem sido amplamente usado em várias
situações humanas. Opressores e oprimidos, o jogo do pequeno poder seduz as
mentes perversas. A pedofilia, a pior das perversões, evidencia as operações
realizadas pelo abusador para ficar no lugar da vítima da criança sedutora.
Culpada e na esperança de ser amada por aquele que abusa dela, ela se
compromete em guardar segredo. Além desta proteção adquirida pelo abusador, a
identificação com o agressor é responsável pelo ciclo de compulsão à repetição,
abusado hoje, um tipo de abusador amanhã.
Em “descida ao inferno”, Guzzo nos
refresca a memória tão adoecida pela repetição de episódios deste tipo. Mas
este é um caso emblemático da nossa realidade. “Trata-se de um episódio
chocante por sua crueldade em estado puro, e o resultado inevitável de uma
conspiração não declarada dos agentes do poder público para permitir a prática
aberta dos delitos mais selvagens – por serem eles mesmos os autores dos
crimes, ou pelo uso que fazem da letra da lei para livrar os envolvidos de
qualquer risco de punição”. L.A.B., uma menina de 15 anos, tentou furtar um
celular e uma correntinha de prata de um sobrinho de um investigador de polícia
da delegacia de sua cidadezinha. A menina de 15 anos “foi presa dentro da
prisão: arrastada para o fundo da cela, de onde não podia ser vista, tinha a
sua miserável comida confiscada pelos outros presos, que só lhe permitiam comer
se não desse trabalho durante os estupros”. Até que a mídia descobriu. Mas a
mídia tem seu tempo midiático, e são tantos os descalabros... Foram 26 dias
presa aos 15 anos numa cela, exclusivamente, masculina, habitada por mais de 20
homens, sendo estuprada 5 ou 6 vezes por dia/noite. Isto leva a pensar que
cobre, com intervalos pequenos, o seu período fértil. Sabemos que o ciclo
menstrual é de 28/30 dias, não seremos ingênuos em pensar que o período fértil
desta menina se deu a partir do 27º dia de sua detenção. É possível que hoje
ela tenha um filho do “Cão” ou do “vice-Cão”, os dois detentos punidos. Os
únicos punidos neste episódio. Quantas crianças nascem por dia no Brasil,
geradas em estupros e em incestos?
O Estatuto da Criança e do
Adolescente, E.C.A., só é referido quando nos indignamos com os benefícios que
favorecem adolescentes de 17 anos cometendo delitos, assaltos, crimes, alguns
hediondos. Nestas ocasiões ele é execrado. Avolumam-se os clamores para a
diminuição da idade penal. O E.C.A. é belíssimo na letra da lei! Copiado por
muitos países, elogiado como avançado. Confuso fica constatar que vivemos, para
alguns é claro, o tempo da masmorra. Por que a menina L.A.B, de 15 anos não
foi que “beneficiada” pelo E.C.A.? Por
que a delegada que efetuou a prisão não cumprindo o E.C.A., que reza a
apreensão de menores de 18 anos, e não o encarceramento, não foi
responsabilizada legalmente pelo crime que cometeu? Por que a M.M. Juíza que
“regulamentou” a prisão da menina de 15 anos, não foi punida pela
irresponsabilidade e pelo descumprimento da E.C.A. em seus inúmeros artigos que
rezam a proteção da criança e do adolescente até 18 anos? É dever da família,
da sociedade e do Estado zelar pela integridade física, psicológica e social da
criança e do adolescente. Está escrito lá, e também na Constituição, deveria
ser obedecido pelos Operadores de Justiça. O artigo parece-me, é o 244-A do
E.C.A., artigo acrescentado pela Lei nº 9.975, de 23.06.2000. Como não sou
jurista, posso estar equivocada. No entanto, uma indagação não me sai do
pensamento. Por que Delegada e Juíza, duas mulheres, fazem isto por 26 dias com
uma menina? Difícil de responder. Talvez impossível, senão à luz da justiça com
as próprias mãos, ou à luz da psicopatologia das perversões pela ausência absoluta
de capacidade de empatia.
O que acontece que um jornalista e um
economista, pessoas brilhantes em seus saberes, mas que não tiveram,
necessariamente, uma formação acadêmica voltada para o psicológico, são capazes
de compreender tão claramente a perversão do abuso sexual, e, Operadores de
Justiça que deveriam exercer, institucionalmente, a proteção escrita no
Estatuto, não o fazem. Apesar de termos excelentes Operadores de Justiça,
também, no caso de L.A.B., que não é a única, não ouve apenas omissão, o que já
é grave. Houve conivência com a transgressão.
Aproveito a oportunidade para perguntar: quantos pedófilos estão presos,
condenados segundo o agravamento das penas? Será que não existem? Como bem
disse Guzzo, este Brasil não muda. Certamente isto se deve ao resíduo do
entendimento da importância, nenhuma, da criança e do adolescente. Não adianta
a letra da lei, é o comportamento transgressor que perdura. Afinal, o
Infanticídio foi tolerado até o século XVII. Continuamos matando crianças e
adolescentes de bala perdida, de crack, de barganhas lucrativas nas mais
diferentes moedas, enfim, de miséria psicológica. Meninos e meninas abusados e
explorados sexualmente. Adolescentes violentados. Este é um povo de crianças e
mães sitiado pelas instituições. Abandonados e desamparados, sempre
desacreditados, ricos e, principalmente, pobres. O abuso sexual percorre todas
as camadas sócio-econômicas, todas as graduações profissionais, intelectuais e
religiosas. Porque não é preciso tirar a vida para causar uma morte. A tortura
sexual em suas diversas formas de abuso, mata a vida psíquica, mata o processo
de humanização, mata a possibilidade de cidadania.
Ana Maria Iencarelli.
Psicanalista de Crianças e Adolescentes. Outubro de 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário