sexta-feira, 17 de maio de 2024

E a Criança, quem olha por ela? Parte II

E a Criança, quem olha por ela? Parte II Quanta tristeza! Quantos horrores! Quem vai olhar pela Criança enquanto Política Pública? Temos no Parlamento a bancada da Bala, a bancada da Bíblia, a bancada do gado. Não temos uma Bancada da Criança. Romantizada, ela é invisibilizada. Talvez seja um fantasma. Temos tanto apreço pelas crenças esotéricas, tanta atração por teses que transitam na justiça, na saúde-SUS, na Educação, que dogmatizam fabulações sobre vidas passadas que “trazem” explicações que inocentam criminosos de crianças atuais, induzindo a sentenças que prejudicam, para sempre, o desenvolvimento infantil e a civilidade que é desprezada. Mais uma vez assistimos um desastre, este sem precedentes, com mais de 100 mortos, número ainda subnotificado. Desastre anunciado. Mais uma vez. Não cuidamos, não prevenimos e dividimos o ônus doloroso pelos mesmos indivíduos que sustentam essa máquina, pouquíssimo, humana. Fui instada hoje a produzir uma orientação para os voluntários que estão nos abrigos de Crianças. São muitas, claro que não sabemos quantas. Não há muito interesse público por esses números. Mas, só ontem chegaram 60 Crianças sem seus pais para esses voluntários. Parei e me perguntei: o que vou dizer para essas pessoas? Não os conheço, nem os adultos que se tornaram cuidadores de supetão, nem as Crianças que estão órfãs de pais e de tudo, também de supetão. Não sabia, até aquele momento do pedido que recebi, o que seria uma orientação desse tipo, e com essas dimensões. Fui buscar os fatores fundamentais indispensáveis à sobrevivência psíquica de uma Criança que é vítima de uma situação traumática. Lembrei que havia uma conexão com as Crianças que são vítimas de violências intrafamiliares. No entanto, para as gaúchas, a identidade foi atingida, o que me fez compreender que o início é o nome. E ninguém consegue decorar 60 nomes de uma vez. Fiz a recomendação de afixar o nome na roupa. Talvez seja visto como impossível, falta tudo, mas isso é um tudo nesse momento tão sofrido. É preciso recobrar a existência ouvindo o seu nome. E, para uma Criança que perdeu, literalmente, tudo, ganhar uma folhinha seca que caiu da árvore, pode representar seu “re-primeiro” objeto, seu primeiro objeto de um recomeço de incertezas e medos. Muitos medos. Das Crianças, e dos adultos. A vulnerabilidade, peculiar à infância, foi multiplicada exponencialmente. Sabemos que a condição de ultra vulnerabilidade atrai os perversos. As Crianças que vivem guerras são acometidas por todo tipo de violência por parte de adultos, “soldados”, que, não suportando o medo que sentem, atacam os mais fracos para obter uma fugaz sensação de Poder. E fui tecendo recomendações que, penso, reduzem alguns poucos danos. Uma palavra sobre a especificidade dos portadores de autismo, com sua sensibilidade a barulhos e sua intolerância a aglomerações, dois fatores onipresentes nesse abrigamento provisório. Outra, sobre o desaconselhado “tá tudo bem”. Enganar uma Criança num trauma continuado, com perdas irreparáveis, danifica muito mais que a verdade. É preciso encorajar, mas não minimizar as etapas que ainda terão que sofrer. Um pouco antes de me envolver nessa tentativa de ajudar Crianças e Cuidadores, apanhados de surpresa para viver esse doloroso evento, tinha sido tocada por uma matéria que mostrava um grupo de mães que perderam um filho. A fundadora sofreu a perda da filha adolescente num acidente, e decidiu utilizar seu conhecimento teórico, é Psicóloga, para unir pela dor, essa dor que não passa, esse luto que não termina. A eficácia possível estava ali. Eu conheço de perto uma dessas mães, a sua dor, participei dessa finalização da vida de uma menina de 19 anos, e posso atestar essa eficácia possível. Mas a véspera do dia das mães é cortante. Dói de novo. Sei que muito. Somos mal preparados para enterrar nossos pais, nossos filhos, não. É antinatural. Mas, acontece. Como as Crianças gaúchas também é antinatural. Já estava triste antes disso. Mais uma tragédia anunciada. Aliás, várias tragédias que estão mutilando nossas Crianças. Quem ocupou bancos universitários deveria ter a humildade de reconhecer que nem naquela Ciência que você está cursando, não se tem total conhecimento, não se afirma impunimente. Mas existem agentes de justiça que têm a prepotência de desqualificar o trabalho do outro profissional, sem a menor cerimônia. Imaginar que uma experiência de muitos ou alguns anos como julgador, lhe confere competência para desprezar o trabalho do profissional que não tem aquele crachá onde se lê “da minha confiança”, é incongruente com sua função. Estudamos por décadas, escrevemos artigos científicos, discutimos muito os casos, e alguém acha, sim, acha que estamos errados e usa do Poder. Provas não são apreciadas, datas não são seguidas, invertendo tempos, laudos confeccionados à distância, mas sem nenhum contato, sem saber se a mãe é loura ou morena, e a criança tão pouco, são aceitos e a “profissional” continua sendo “de confiança”, gozando de total credibilidade, apesar da centena de Representações em gavetas do Conselho de Classe. É visível a incompatibilidade entre os Poderes. E entre as Instituições Nacionais e os Organismos Internacionais que tentam interceder pela Criança cobrando os Tratados Internacionais assinados pelo nosso país. Assim também vemos um agente desconsiderando o outro, o que representa a Criança. Um juiz dá uma Medida Protetiva, por crime cometido, e o outro anula. Está cada vez mais difícil entender as funções específicas de cada um. Isso acrescido do ímpeto da “legalização” de comportamentos que violam Direitos de Criança. A imparcialidade, o respeito pela palavra do outro, e, sobretudo, pela palavra da Criança, estão em vias de extinção, constatamos, e conduzem a erros. As certezas absolutas são bem perigosas, mas dogmáticas. E a Criança, quem olha por ela?

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