Quando
a Criança relata um horror. – Parte II
Por que uma criança que relata um abuso
incestuoso, está mentindo, está fantasiando, e isto é afirmado como tendo uma
falsa memória implantada? Ela é, totalmente, desacreditada.
E, por que uma criança que relata um abuso
praticado por pessoa sem laço familiar, não está mentindo, não está fantasiando,
e ninguém colocou uma falsa memória sobre o episódio relatado? Ela tem todo o
crédito.
E
qual seria a diferença? O que confere crédito à voz de uma, e descrédito com
toda a desconfiança da outra criança? Por que o fato de ser alguém que a
criança ama e obedece, o que é um enorme obstáculo afetivo para ela, torna seu
relato falso? Parece ser uma incoerência. Mas, como se sustenta até quando
provas materiais são logradas? Provas. Rompimento de hímen, fissuras anais,
doença sexualmente transmissível, por que são vistos como “ausência de prova” e
determinam a inversão da culpa e do dolo. Sem provas, a mãe que denunciou,
passa a ser a suspeita, imediatamente, julgada sem nem espaço para o
contraditório, e a criança é tirada de sua convivência. A Privação Materna
Judicial é sentenciada, e nada traz o crédito para a voz da criança.
O relato da criança é coerente, é
detalhado, apresenta conhecimentos sobre a sexualidade adulta que ela não tem
recursos cognitivos para saber. Esta obviedade é insuficiente para qualquer
leve questionamento. A certeza de que ela mente, ela fantasia, ela repete um texto
implantado, é dogmática, mesmo que não haja nenhuma possibilidade de
comprovação, e que seja uma tremenda impossibilidade teórica. Lembrando, a
criança funciona em raciocínio concreto, sua linguagem, sua memória, são
movidas à experiência que passa pelos 5 sentidos perceptivos, visão, tato,
audição, olfato, e a percepção gustativa. Se uma criança de 4 anos relata que
do piupiu do papai sai um leitinho que tem gosto de estragado, é porque a
criança sentiu o gosto do sêmen. Porque, aos 4 anos, a criança não tem noção de
ereção nem de ejaculação sem que tenha passado pela experiência na boca, do
gosto experimental, ao vivo.
De difícil compreensão, ficamos diante de
incongruências ilógicas. É quando surge a pergunta: como é possível, sem
sustentação nem mesmo de bom senso, ser mantida esta postura de descrédito na
criança? Avançamos em estudos metodológicos científicos, desenvolvemos um
excelente protocolo, escrevemos uma Lei, a 13.431/2017, onde construímos um
novo paradigma, a Escuta Especial e o Depoimento Especial, vedando as
inquirições de crianças, que causam coação, constrangimento, intimidação,
torturas que causam revitimização. Mas, como a lei objetivou o relato da
criança, retirando a inconsistência da subjetividade interpretativa, esta lei tem
sofrido uma enorme resistência nos ambientes psico-jurídicos.
Aqui cabe outra indagação. Por que
profissionais que deveriam proteger a criança, optam por priorizar o adulto
suspeito, e buscam a punição da adulta denunciante? Não podemos deixar de pensar
que é preciso ter um outro elemento que alimente a cadeia que se formou para
garantir a execução da Privação Materna Judicial, mediante o descrédito da voz
da criança. Se, por um lado, encontramos despreparo e ignorância sobre a
realidade do desenvolvimento infantil, por outro, é inegável que também existe
a intencionalidade que usa estratégias bem articuladas.
E, ainda. É do conhecimento de muitas
esferas jurídicas, inclusive as federais, que a voz da criança e o adolescente,
vítimas de abuso sexual intrafamiliar, portanto, incestuoso e continuado, é
desacreditada. A repetição das revitimizações com sucessivos “estudos
psicossociais”, levadas à exaustão do descrédito, descumprem, acintosamente, a
Lei da Escuta Especial. Continuam a usar estes métodos de tortura para a
criança, obrigando-as a fazerem várias “sessões” de acareação, quando o “olhômetro”
é o único instrumento de aferição. Acareação e olhômetro são o bastante
para montar um Sofisma, sem nenhuma preocupação com as consequências nefastas que
estão causando.
Há que se pensar que o sentido desta
violação estruturada e rotineira tem raízes de difícil visibilidade. Mas que
existem e têm muita eficácia. Lembrando que os comportamentos humanos,
historicamente, abomináveis sempre foram amparados cada um em sua devida lei. A
Exploração de riquezas pelos colonizadores era legalizada. O comércio mundial
de escravos era legalizado. O Apartheid era legalizado. O Holocausto era
legalizado. O Homem cria uma lei para ser amparado ao se comportar de maneira
cruel com o outro.
Hoje, crianças que são escolhidas como
vítimas de abuso sexual intrafamiliar vivem um novo Holocausto. São entregues
aos seus abusadores sob os auspícios do Estado. Desistem de relatar. Sofrem o
processo de adaptação ao abuso. Vivendo em cárcere privado camuflado, esmagadas
pela experiência contínua da dominação de alguém, não saberão reagir. Muitas
morrem assassinadas pelos seus algozes. A maioria tem morte psíquica, mutiladas
na dignidade e incapacitadas para a vida adulta das relações afetivas interpessoais
saudáveis. Perdem a Voz. A combinação do fascínio pelo Poder Absoluto, o que
move um abusador de criança, com a nossa omissão patrocina o comportamento
perverso da prática da pedofilia e seus crimes. Passaremos a colher esta
tragédia social dentro de alguns anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário