Quando
a criança relata um horror. Parte I
A voz da criança merece crédito? Criança é
Sujeito de Direito. Mas, quando ela desarruma o Mito da Família Feliz? Este é o
título dado pela Desembargadora Maria Berenice Dias ao capítulo de seu livro “Incesto
e Alienação Parental – Realidades que a Justiça insiste em não ver”, 2ª Edição,
2010. Neste capítulo, escreve a desembargadora afirma que, por despreparo dos
operadores de Justiça, o que vigora é uma conivência com o criminoso, o
abusador sexual. Em outro capítulo do mesmo livro, Falsas Memórias ou Apuração
Inadequada, Maria Helena Ferreira chama a atenção para este tipo de abuso, onde
“a violência e a distorção da posição de autoridade paterna invadem a família,
provocando um borramento das diferenças generacionais e sexuais. Instala-se uma
confusão, que deixa sem opção a vítima”.
Mais adiante, esta autora diz: “Passa-se,
então, a delegar à criança-vítima o fornecimento da prova. Já que seu corpo não
ficou concretamente marcado, pede-se para que sua mente, esta certamente
marcada, exiba com clareza a certeza de que o abuso aconteceu. E se pede para a
criança informação detalhada, não respeitando sua idade, seu nível de
pensamento, seu estado traumático, embora para qualquer outro assunto esses
cuidados sejam tomados”. Talvez alguns digam que isto era antes de 2010. Que
hoje não mais se pratica este absurdo. Ledo engano.
Primeiro, é preciso ter o conhecimento de
como foi aprimorado na perversidade este fornecimento da prova pela criança/vítima.
Foi acrescentada e solidificada, com justificativa pífia, a acareação,
a criança é obrigada a fazer uma sustentação, com relato que lhe é
pedido pormenorizar, diante de um perito que lhe é desconhecido e do autor dos
abusos que ela apontou. Tudo, num clima interpretativo da subjetividade do
perito. A partir daí, a desqualificação da voz da criança está assegurada. Laudos
são emitidos afirmando que não houve abuso. Laudos, cada vez mais, sentenciais.
Estudiosos com Responsabilidade passaram a
se debruçar na questão da sobrecarga da criança que revela abusos sexuais
incestuosos. Pesquisaram em 26 países como era tratada esta questão. A Childhood
Brasil contribuiu e fundamentou uma mudança de paradigma. Ao invés de
inquirição da criança, foi proposta a Escuta da Criança Vítima ou Testemunha de
Violência Sexual, ampliando e qualificando a escuta. Escuta. Entenda-se como
violência todo ato libidinoso, mesmo que não deixe marca material.
As perguntas são uma parte muito
importante desta Escuta Especial. Observando princípios de respeito às
peculiaridades da criança, esta metodologia foi lançado o Protocolo, há pouco
tempo, para complementar a Lei da Escuta Especial, datada de 04/04/2017, Lei
13.431/2017. Esta lei, 13.431/2017, determina que nenhuma criança ou
adole4scente, vítima ou testemunha seja ouvida em qualquer outro método que não
a Escuta Especial, com gravação em vídeo pelo cuidado com a revitimização.
Temos a constatação de crianças levadas à exaustão de “estudos psicossociais”
com direito à acareação, que induzem a criança ou adolescente ao descrédito das
Instituições que deveriam protege-los, como já ouvi de vários, “já
falei mais de mil vezes e ninguém me ouve, agora digo que não houve nada, quero
me livrar logo daquelas pessoas que só duvidam de mim”. É a Retratação
que é produzida, institucionalmente, por esta exaustão.
No entanto, uma curiosidade chama a
atenção. Quando o abuso sexual é extrafamiliar é praticado por alguém fora do
grupo com laços familiares, a criança é acreditada de pronto. Não se duvida.
Não se faz pergunta “pegadinha”. Por que será que quando o abusador é um funcionário
da escola, o amigo do vizinho, ou o tarado do parquinho, a voz da criança e do
adolescente tem crédito? Ela só mente ou fantasia quando é o pai, o tio, o avô,
o irmão mais velho, que, justamente, trazem um acréscimo de angústia e prejuízo
mental muito maior?
O mais incrível é que, apesar de todas as
evidências de revitimização no uso de métodos que incluem a tortura da acareação,
a lei 13.431/2017, da Escuta Especial e do Depoimento Especial, no mesmo
método, as crianças e adolescentes continuam sendo submetidos ao descumprimento
de seu Direito da Dignidade Sexual. Continuam os “estudos psicossociais” pelo
método que utiliza o “olhômetro”, como instrumento de aferição de abuso sexual
incestuoso. Como se fosse possível “ver” sinais de abusos incestuosos que
acontecem há muito e são guardados e camuflados com todo cuidado pelo abusador
e abusado. Na ausência absoluta de metodologia científica, aceita-se a
subjetividade sem fundamentação de perícias que, partem de um preconceito e não
se preocupam nem um pouquinho com a avaliação daquele que é apontado pela
criança como o autor.
Frequentemente, para não dizer sempre,
quando uma criança consegue sustentar o relato dos abusos sofridos, o laudo a
enquadra como tendo “falsas memórias” implantadas pela mãe que quer tirar
dinheiro do ex-marido, ou ficou ressentida e quer prejudicá-lo. Lembrando que a
memória da criança é construída com base em seu desenvolvimento cognitivo, ou
seja, baseada na experiência. Uma criança de 4 anos não tem o conhecimento da
ereção e da ejaculação de um adulto, portanto ela não tem como adquirir a
memória de detalhes de cor, consistência e gosto do sêmen do pai. Estes itens são
adquiridos por experiência vivida. O erro teórico da afirmação de falsa memória
quando o relato traz estas experiências sensoriais é grosseiro.
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