VIOLÊNCIA
DA IMPUNIDADE:
MAL-ESTAR OU
ORGULHO NACIONAL?
Ana
Maria Iencarelli *
Reconhecemos com certa facilidade as imagens de exploração de mão de
obra de crianças e adolescentes nos pequenos carvoeiros do serrado, ou nas
meninas que vendem o corpo na orla de nossas cidades litorâneas, nas crianças
dos sinais de trânsito vendendo balinhas açucaradas ou bolinhas acrobáticas.
Mas, numa segunda versão, não enxergamos o trabalho de crianças e adolescentes
no tráfico, nas passarelas, na publicidade, ou nas novelas. Quando na nossa
sala, vemos na telinha crianças muito pequenas que nos emocionam chorando, se
comunicando com a mãe que já morreu ou sendo intimidadas e assombradas por uma
avó má, por exemplo, esquecemos que são crianças trabalhando, e quanto esta
brilhante atuação vai custar, psicologicamente, para aquelas crianças.
Por outro lado, como explicar, por exemplo,
que uma garota de 14 anos, matriculada na 4ª série só consiga ler as letras das
palavras sem juntá-las nem mesmo em fonemas, e que um menino de 13 anos, da 3ª
série, não saiba ler ou fazer conta de diminuir por escrito, e se saia tão bem
organizando e contabilizando o comércio de drogas? O que aconteceu com aquela estatística que
mostrava cerca de 40% de repetência na 1ª série? O ensino melhorou? Não. Hoje
não é permitida reprovação, que foi substituída pela aprovação progressiva,
“resolvendo” assim os tais 40%. Aliás, a matrícula da criança (em alguns casos
apenas o carnê de vacinação) é moeda em bolsas sociais. A aprendizagem, não
entra em questão, deixando claro assim, a desvalorização e insinuada inutilidade
da escolaridade e da educação pelo próprio Estado. Mas ter os filhos
matriculados se tornou rentável, assim como ter um filho a cada ano aumenta a
renda de uma mãe desvalida. Parece-me que há aqui um indício de uma perversão
social em que a criança passa a ser produto a ser vendido desde que nasce.
A
entrada precocíssima no mercado de trabalho por todas estas vias indica a
falência e o descrédito na proposta escolar e, mais tarde, nas profissões
regulares e regulamentadas. É esperado que a Escola tenha o compromisso com a
formação do caráter e com a transmissão de cultura e de conhecimento geral,
enfim, a responsabilidade pelo processo de humanização. Em lugar disso, e do
aprender a estudar, a se organizar, a prever usando o raciocínio lógico,
observamos uma crescente tendência a se produzir neste período uma escola de
violência psicológica que interrompe o desenvolvimento psicológico saudável,
com a banalização da agressividade, a disseminação da prática do bullying, o
culto e o cultivo da impunidade, presente no discurso social, através de uma
espécie de adoração contemplativa. As leis, belíssimas, a de Responsabilidade
Fiscal ou o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas o seu cumprimento,
esquecido ou negligenciado. Ficamos intrigados quando vemos que Magistrados e,
mais recentemente, Ministros, assaltados ou recebidos à bala, não prestam
queixa, dizendo que “isto é normal nas grandes cidades”. Se não sabemos por que
isto acontece, temos a forte impressão de que as nossas Instituições não
inspiram credibilidade suficiente para o exercício da cidadania nem mesmo para
as pessoas que fazem parte e são pagas por estas Instituições. Para onde foi a
autoridade?
Não gostaria de fazer deste precioso momento uma denúncia. Tenho a
impressão que, em momentos de barbárie contra nossas crianças, temos gritado,
temos vestido camisetas em atos numerosos, temos difundido e-mails, mas não
temos sido ouvidos. Gostaria de acrescentar mais uma reflexão conseqüente,
juntando-me, de novo, às vozes desta luta. Se preciso for, repetirei,
incansavelmente, por mais um milhão de vezes até sermos ouvidos.
Observamos que todo o progresso de conhecimento do Homem não tem se
convertido em progresso humano, mas sim em aumento de poder. O poder destrutivo
está no nosso comportamento cotidiano. A premência da satisfação dos desejos
individuais é a ordem que rege. A incapacidade de empatizar é uma espécie de
lei básica que patrocina este comportamento egoísta vigente. Afinal, se colocar
no lugar do outro tem sido considerado bobeira de quem quer arrumar problema.
Em seu artigo, O Mal-estar na Civilização, podemos acompanhar o pensamento de
Freud com a observação do que está se passando conosco. O desenvolvimento
humano é resultante da boa satisfação do princípio do prazer submetido ao
princípio da realidade, sob a regência do nosso superego. Nossa condição de
humanização está submetida por sua vez a união com os outros humanos, a
integração a uma comunidade humana ou adaptação a ela. O processo de
desenvolvimento cultural, como o processo individual, nos impõe restrições. As
regras de convivência e as leis fazem parte deste superego comunal. Sabemos
que, se por um lado a premência da felicidade buscada pelo indivíduo, esbarra
na interdição do grupo, o sentimento de frustração advindo pode fazer com que este indivíduo
rompa esta lei imposta e realize seu desejo. Espera-se que a desaprovação da
comunidade e a punição por este ato, conduza aquele indivíduo à tomada de
consciência e conseqüente formação de culpa e remorso. Ou seja, quando a
autoridade interna (superego individual) falha, é a autoridade externa
(superego da comunidade) que entra em cena. Disto depende o movimento civilizatório, porquanto este movimento prevê
todo o desenvolvimento do pensamento reflexivo que produz abstração, nosso diferencial. Mas,
como isto está ocorrendo em nossa sociedade?
Da mesma maneira que já sabemos que a criança ouve mais do que lhe é
dito, que ela é antenada, que ela tem em curso um processo identificatório onde
os protagonistas são aquelas pessoas que lhe são especiais, sabemos que nossas
crianças estão vivendo toda esta barbárie social: o menino que é estraçalhado
pendurado pelo cinto de segurança, os 40 votos secretos, os 40 mensaleiros, a
barbárie tributária, a do sistema de juros, a da educação, a da saúde, a da
previdência, a empregada confundida com uma prostituta, o índio em chamas, a
barbárie das drogas, etc., etc., etc. Podemos pensar que criança não entende
destas coisas e, portanto, não é atingida por elas. Mas também sabemos que o
que habita a mente de uma mãe e de um pai um tempo depois, é captado pela
criança ainda bebê em forma de impressão e sensação agradável ou desagradável e
assustadora. Além disso, pensar que só teve sangue na porta do carro é também
uma tentativa de negação do sangue de milhares de crianças que escrevem esta
nossa história de miséria violenta pela perversão social.
A
violência narcísica, nova forma, é praticada contra nossas crianças quando são
expostas precocemente para fins de venda. O seu corpo se torna foco de olhares apreciativos e
rentáveis ou depreciativos pelo critério atual de beleza da imagem visual. O
sucesso a qualquer preço é o que importa porque este se tornou um sinal de
“felicidade”. Assim, adultos acreditam que de “book” de suas filhas nas mãos a
vida delas, e deles, claro, estará resolvida mesmo quando ela tem que ir para o
Japão aos 14 anos. A competição pela disputa de um papel numa novela faz com
que adultos sigam, religiosamente, instruções e horários de cursos
preparatórios para testes, sem data de término. Poderíamos incluir aqui também
a obrigação aprisionante do menino de se tornar um “Ronaldinho” nas escolinhas
de futebol, vigiado de perto, geralmente, por uma mãe que deseja este sucesso
para o filho, sucesso que virá acompanhado de uma mais garantida aposentadoria
para ela. Modelo e atriz, e jogador de futebol, são os ideais de nossas
crianças, alimentados pela comunidade.
A
guerra urbana também tem violentado nossas crianças. Cada cadáver rompe a
barreira do imaginário de milhares de crianças e instala uma concretude
incompatível com a necessidade, própria e indispensável da infância, de
fantasiar: a realidade brutalizada ocupa todo o espaço mental com imagens
horrendas de morte violenta. É preciso se desviar destes corpos a caminho da
escola, logo pela manhã, e fazer sumir o medo que ficou preso, sabendo que no
dia seguinte tudo se repete. Invadir a mente com imagens violentas concretas
danifica de maneira gravíssima a possibilidade de ter saúde mental e,
conseqüentemente, social.
Também praticamos violência contra a criança quando assistimos o
nascimento de cerca de 500 000 bebês/ano filhos de adolescentes, crianças que ainda necessitam de cuidados que passam a
cuidar de outras crianças. Mas, também
é de 500 000/ano o número de mortes violentas no Brasil. Ou quando temos
cartazes que vão envelhecendo e amarelando as fotografias cada vez menores,
porque o número é cada vez maior de crianças desaparecidas. As outras crianças,
as que não desapareceram, também tem o conhecimento deste perigo que
correm.
Se o assistencialismo diminuiu a linha da miséria sócio-econômica em 5.9
milhões de brasileiros, é no mínimo preocupante, que os tire da miséria tendo
como critério sua inclusão na linha de consumo, para passar a assistir
televisão. Evidentemente, não desconsideramos a dor da fome e da falta de
condição básica para a vida, igualmente intolerante, mas ilustrar o sucesso
pelos números do IBGE, de um programa de Governo, pela aquisição de um aparelho
de televisão, sugere a manutenção da miséria enquanto imposição de verdades
absolutas, linguagem usada por este meio de comunicação. Esta é uma das formas da miséria
psicológica, alienante e dominadora, talvez a pior das misérias humanas.
Todas estas ameaças estão, permanentemente, presentes na mente das
nossas crianças e dos nossos adolescentes. E, como modelos identificatórios,
estamos fornecendo o material para a continuação deste violento e sombrio
estado de coisas. A impunidade é alimentada pelo discurso social da impotência,
do desânimo que se converte em uma certa excitação pela barbaridade da nova
notícia. Parece que nos tornamos todos profissionais de mídia dando importância
à notícia enquanto notícia. Pertencemos a um grupo quando complementamos alguém
que conta uma história escabrosa, com um caso nosso. Isto me parece também um
mecanismo de defesa. Ao mitigar, estamos tentando minorar a ansiedade e o medo
causados pela nova informação.
A
falsificação e a pirataria não são mais exclusividade de certos artigos.
Legitimamos a pirataria da fita de vídeo game quando, na saída do metrô depois
da tarde de trabalho honesto e/ou institucional, compramos algumas no camelô
pelo preço de uma na loja. A justificativa é que o Governo encarece muito com
os impostos, e, além disso, a da loja ninguém garante que também não é
pirateada, ou contrabandeada. Sem esquecer que para nosso filho, criança, tanto
faz e ele pode quebrar ou largar para lá e não vai lhe dar tanta raiva porque
foi baratinha. Estamos assim cometendo várias falhas educacionais, que são
difíceis de serem levadas em consideração, tamanha é a tolerância e a
banalização de pequenos desvios. No entanto, estes mesmos pequenos desvios
estão sendo assimilados pelas crianças e adolescentes. Não proporcionamos um
critério claro de certo e errado, de pode e não pode, de limite, de lei, de
punição. Não facilitamos a aquisição deste superego individual, e o pior é que,
por vezes, apelamos para aquele mecanismo de defesa conceituado por M. Klein, a
identificação com o agressor. Justificando o comportamento agressivo e
culpabilizando a vítima, invertemos a situação por fraqueza e medo de enfrentar
o agressor. Vale lembrar aqui o depoimento da mãe de um jovem morto há algum
tempo atrás por ter tentado ser solidário com uma senhora de 79 anos que estava
sendo assaltada. Os comentários ouvidos pela mãe do rapaz insinuavam que era
incompreensível ele ter sido “bonzinho”, por que? Então a culpa foi dele, tinha
que ser esperto, quem mandou ser solidário!
Se não encontramos a atitude adequada nas pessoas com relação à prática
das diversas formas de violência contra a criança e o adolescente, também não
encontramos políticas públicas consistentes, conseqüentes e persistentes. Uns
culpam os outros, mas todos temos responsabilidade na manutenção e agravamento
das diversas formas de violência e degradação da nossa sociedade. No planalto,
no morro, na nossa casa, todos os dias, a violência é endêmica. Se
relativizamos a gravidade e as conseqüências dos deslizes, tanto os pequenos
quanto os grandes, se negamos nossa participação, se nos identificamos com o
agressor, negociamos a lei a cada esquina, valorizamos mais a imagem que o
conteúdo, não estamos sendo saudáveis para nossas crianças e adolescentes. Não
há mágica quando estamos tratando de processos de desenvolvimento. A
permissividade e a tolerância elástica não produzem estruturação e organização
social. É impossível esperarmos punição se nos orgulhamos da impunidade.
*Ana Maria Iencarelli.
Psicanalista de Crianças e Adolescentes
V Jornada Internacional sobre Violência Contra Crianças.
Mesa: O estado atual da Sociedade.
Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2007.
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