Abuso sexual: ação e reação! Migalhas n. 1466 de 01.08.2006
Tânia da Silva Pereira*
O crime de abuso sexual contra a criança é
odioso sob todos os aspectos, especialmente quando cometido dentro do próprio
lar (como acontece na maioria das vezes) e nem sempre tem merecido o repúdio da
sociedade, seja no particular, seja através de suas instâncias representativas.
Esse tipo de crime,tenha ele, em qual
dosagem for, o seu ingrediente patológico, tão antigo quanto o próprio homem,
com seus desvios inescrutáveis – e nem por isso menos culpáveis e puníveis –
deveria ser hoje uma excrescência quase residual no avanço da civilização, sob
os aspectos fundamentais da moral e da ética. Pois ocorre o contrário,
contradizendo, aliás, os mais elementares preceitos da cultura moderna, ou como
preferem alguns, pós-moderna e ultrapassando até mesmo o que deveria pertencer
ao terreno da ficção em suas incursões na sordidez humana: está em plena e
febril atividade no mundo atual o que os corações mais cândidos ou singelos
devem resistir a acreditar como real - um movimento com nome e digital: o “backlash”.
Trata-se da mobilização de recursos humanos
e financeiros com o objetivo de desacreditar as vítimas de violência
intrafamiliar, seus terapeutas, quem quer que tente proteger as vítimas, e,
sobretudo, elas próprias, as crianças pequenas abusadas, assim como seus
advogados e peritos. Por absurdo que pareça, que não se subestime o poder
crescente dessa maré do mal. Não estamos diante de um fenômeno localizado,
transitório e frágil. Muito ao contrário. E é contra ele que os cidadãos de
todos os continentes, não se excluindo obviamente os brasileiros de bem, devem se
mobilizar antes que esse trabalho deletério contamine definitivamente o ser
humano de amanhã. (Depois de amanhã pode ser tarde demais).
O “backlash”
surgiu na década de 80 no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. Na Argentina
obteve um maior impulso a partir do ano 2000, por iniciativa do advogado e
ex-juiz Eduardo Cárdenas, ao denunciar em um periódico jurídico – La Ley - “uma verdadeira
indústria de denúncias de abuso sexual” em nome de uma suposta “defesa da
unidade familiar”. Com forte influência nos Tribunais argentinos, o referido
advogado fez graves acusações a colegas e especialistas, atacando também a
credibilidade do trabalho desenvolvido por instituições públicas. Diante deste
movimento, segundo Virginia Berlinerblau “disfarçado de boas intenções”, foi
encaminhado importante documento à Subsecretaria de Direitos Humanos daquele
pais assinado por uma centena de profissionais de instituições públicas e
privadas, advertindo para uma “escalada que põe obstáculos ao processo de
visualização da violência doméstica”.
Nesta mesma linha de orientação, também no
Brasil, um grupo de advogados e especialistas passou a atuar, sobretudo em São
Paulo e no Rio de Janeiro; eles se utilizam de questionáveis mecanismos para
desmontar os serviços criados com o objetivo de apurar e atender situações de
abuso e violência intrafamiliar, buscando invalidar as denúncias, invertendo o
sentido da conduta abusiva e atribuindo culpa a quem denuncia ou protege a
vítima. Magistrados e Promotores, acusados de “parcialidade”, e profissionais
responsáveis (advogados, psicólogos, assistentes sociais e médicos) têm sido
denunciados em seus órgãos de classe visando intimidá-los ou impedi-los de
atuar em situações de abuso sexual.
Tais considerações não devem ameaçar as
iniciativas de manutenção e consolidação de um “trabalho em rede” que integre
os vários equipamentos sociais. Essa integração não pode ser interpretada como
um conluio entre profissionais que investem sua atuação na apuração da verdade
e na proteção das vítimas.
O papel da polícia é importante na medida
em que existam equipes especializadas em entrevistas de revelação, sobretudo
com jovens e crianças e as respectivas famílias. O desenvolvimento de programas
permanentes especializados multidisciplinares deve abranger a formação jurídica
e técnica relacionada com o abuso sexual. A definição de um modelo de
intervenção criminal e a identificação de estratégias e táticas de investigação
eficazes são apenas uma parte dos desafios. A participação de peritos
qualificados para expressarem a opinião quanto à confiabilidade dos depoimentos
da criança representa apoio significativo.
A baixa efetividade dos meios probatórios
tem acarretado a impunidade de suspeitos. Cabe lembrar que não são incomuns as
hipóteses em que os magistrados, em nome de efetivo cuidado, mantêm uma
visitação assistida por uma pessoa da confiança do genitor denunciante. Na
maioria das vezes o acusado se afasta sem se interessar em conviver naquelas
condições, o que induz a suspeita de suas efetivas intenções.
A ocorrência rotineira destes casos contra
crianças e adolescentes permanece como uma questão que a maioria das pessoas
prefere ignorar. Difícil de ser investigado, o abuso sexual manifesta-se como
crime secreto ou prática oculta, contra vítimas que são sempre contrárias a
relatá-lo ou praticamente incapazes de fazê-lo. Em geral, a vítima é a única
testemunha e as evidências físicas de abuso sexual existem apenas em uma
pequena porcentagem de casos. Esses fatores atropelam as investigações em todos
os seus níveis — desde a sua denúncia até o julgamento.
Não é raro e representa uma experiência
freqüentemente traumática proceder-se a uma “acareação” entre a criança e o
acusado, sobretudo quando este é um membro da família. Nesses casos, a criança
pode sentir uma culpa adicional caso ele seja condenado. Sentimentos
conflitantes para com o acusado são, em geral, uma causa significante do trauma
experimentado pela criança abusada sexualmente.
Diante da freqüente dificuldade de
revelação do abuso, sobretudo no Judiciário, destaque-se a iniciativa do
Tribunal do Rio Grande do Sul ao implantar um sistema identificado como
“Depoimento sem danos” por iniciativa da Desembargadora Maria Berenice Dias. Em
ambiente adequadamente equipado, a vítima é ouvida por um psicólogo ou
assistente social. O depoimento é acompanhado por vídeo, na sala de audiência,
pelo juiz, pelo representante do Ministério Público, pelo réu e seu defensor,
que dirigem as perguntas, por meio de uma escuta, a quem está ouvindo a vítima
e insere o questionamento durante a conversa. O DVD com o depoimento é anexado
ao processo. Assim, a vítima é ouvida uma única vez e seu depoimento pode ser
assistido inclusive no Tribunal quando do julgamento de um eventual recurso.
Dentre os “mitos e realidades” que
envolvem esse tipo de violência devemos distinguir situações controversas que
devem merecer atenção dos especialistas e do Sistema de Justiça: os crimes são
praticados em todos os níveis socioeconômicos, religiosos e étnicos. A maioria
das vezes são pessoas aparentemente normais e queridas pelas crianças ou
adolescentes. A maioria dos agressores é heterossexual e mantém relações
sexuais com adultos; pessoas estranhas são responsáveis por pequeno percentual
dos casos registrados; diante da afirmação comum de que a criança que é abusada
mente e inventa, documento oficial de orientação aos professores afirma que
“apenas 6% dos casos são fictícios e, nessas situações, trata-se, em geral, de
crianças maiores que objetivam alguma vantagem”.
Estes e demais aspectos do problema
refletem destacada importância nos estudos e programas de atendimento às
situações de abuso sexual. Estes últimos devem trabalhar, inclusive, com
projetos de esclarecimento no sentido de se orientar os responsáveis em face de
sinais transmitidos por crianças e jovens acerca do que lhes sucede. Da mesma
forma é flagrante a enorme dependência das mulheres aos seus maridos ou
companheiros e, na maioria das vezes, se negam a crer na possibilidade de que o
mesmo possa cometer tal ato ou mesmo se sentem impotentes para enfrentá-lo.
Uma atuação interinstitucional é
necessária. Devem ser priorizados a promoção, apoio e estímulo a programas de
capacitação de recursos humanos, aplicáveis à função de agentes governamentais
e não governamentais, que trabalhem especificamente com crianças e
adolescentes, sempre com vistas à atuação multidisciplinar.
______________
*Advogada
e Professora de Direito da UERJ e da PUC/Rio. Diretora da Comissão Nacional
para Infância e Juventude do IBDFAM -
Instituto Brasileiro de Direito de Família
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