6 | ENTREVISTA março/abril | 2018
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VIDA JUDICIÁRIA
CLARA SOTTOMAYOR
“O Direito da Família e das
Crianças é uma área altamente permeável às conceções pessoais, ideologias e
idiossincrasias de quem decide” A magistrada judicial tem-se distinguido no
panorama judiciário por um envolvimento muito grande na área do Direito da
Família, Crianças e Jovens, sobre a qual já publicou várias obras, como
“Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio”
– obra esgotada e que vai para a 7.ª Edição -, “Temas de Direito das Crianças”
ou “E Foram Felizes para Sempre...? Uma Análise Crítica do Novo Regime Jurídico
do Divórcio”, entre outros. Maria Clara Sottomayor é Juíza Conselheira no
Supremo Tribunal de Justiça mas está em comissão de serviço no Tribunal
Constitucional, para o qual foi eleita pela Assembleia da República em 2016.
Foi ainda juíza social no Tribunal de Família e Menores do Porto. Sobre quem
tem a responsabilidade de decidir é perentória: “a neutralidade na visão dos
casos está muito condicionada pela experiência e opiniões de cada magistrado ou
magistrada” Criou na Universidade Católica do Porto uma disciplina de Mestrado,
“Direito das Crianças”, única no panorama universitário português, e cujos
estudos estão publicados no livro “Temas de Direito das Crianças”. Que
objetivos tem a disciplina? Conforme consta das fichas da unidade curricular e
do requerimento dirigido ao Conselho Científico quando propus a criação da
disciplina, em 2009, os seus objetivos são: um contributo para uma melhor
aplicação do direito e para a qualidade das decisões administrativas e
judiciais que dizem respeito às crianças; a consciencialização social do valor
e da dignidade humana das crianças, como pessoas, titulares de direitos
fundamentais; mudança da mentalidade dos/as futuros/as profissionais do
direito; criação de uma nova cultura da infância na sociedade e nos tribunais.
Qual a avaliação que faz da implementação do novo Regime Geral do Processo Tutelar
Civil (RGPTC)? Ainda é cedo para se ter a certeza do impacto desta nova
legislação. Em Direito da Família, as alterações legislativas demoram algum
tempo a ser postas em prática, uma vez que a tendência para se repetir práxis e
reproduzir mentalidades é normalmente elevada. Refiro-me, por exemplo, a uma
alteração muito importante que foi a que diz respeito aos processos crime de
violência doméstica contra um dos progenitores, com aplicação de medida de
coação. Nestes casos, diz o RGPTC (Lei n.º 141/2015) que se presume contrária
ao interesse das crianças qualquer solução de guarda partilhada ou de exercício
conjunto das responsabilidades parentais e que o direito de visita do
progenitor, indiciado por crime contra o outro, “pode” ser suspenso. O Ministério
Público (MP), no Tribunal Criminal, após conceder o estatuto de vítima, deve
comunicar de imediato ao MP, junto do Tribunal de Família, a abertura de
inquérito para que no Tribunal de Família seja instaurado um processo urgente
de regulação das responsabilidades parentais. Este processo destina-se a que a
guarda das crianças e os alimentos sejam imediatamente regulados para proteger
as mulheres e as crianças das ameaças do agressor, que não paga alimentos nem
sai da casa de morada de família e usa os filhos para pressionar a mulher,
vítima de violência doméstica, a não romper a relação. Tenho conhecimento que,
antes de esta legislação entrar em vigor, havia casos em que um progenitor
indiciado ou condenado por violência doméstica recebia a guarda dos seus filhos
ou em que a mãe, vítima de violência, tinha de se encontrar com o agressor para
lhe entregar os filhos a fim de ser cumprido um regime de visitas. O que
levanta problemas gravíssimos de risco para as mulheres de voltarem a ser
agredidas ou de serem acusadas de incumprimento do regime de visitas.
Desconheço se esta situação se alterou. Mas as mulheres vítimas de violência
doméstica continuam a aparecer nas associações de mulheres a relatar
arbitrariedades cometidas pelos tribunais de família, pela segurança social e
pelas comissões de proteção de crianças e jovens. Algumas experiências estão
relatadas num livro da autoria da jornalista Rita Montez, editado pela
Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, intitulado “Vidas Suspensas”,
disponível on-line para o público. Considera que os Tribunais e respetivos
Juízes/as estão preparados para julgar bem as matérias relacionadas com
Família, Crianças e Jovens? O facto de termos tribunais de competência
especializada não significa que os juízes destes tribunais tenham uma formação
especializada em Direito da Família, Crianças e Jovens. Os magistrados, quando
concorrem para estes Tribunais, não apresentam uma formação pré- via nesta área
do Direito, nem tal formação é requisito obrigatório do concurso. Penso que o
Direito da Família e das Crianças é uma área do Direito altamente permeável às
conceções pessoais, ideologias e idiossincrasias de quem decide e em que a
neutralidade na visão dos casos está muito condicionada pela experiência e
opiniões de cada magistrado ou magistrada. Por isso, é essencial a formação
especializada. É tradição pensar-se na magistratura e nas faculdades que esta
área do Direito Em Direito da Família, as alterações legislativas demoram algum
tempo a ser postas em prática, uma vez que a tendência para se repetir práxis e
reproduzir mentalidades é normalmente elevada é fácil, por não levantar
problemas técnico-jurídicos complicados. Mas na verdade é muito difícil, por
exigir uma formação interdisciplinar que os cursos de Direito não fornecem e
uma capacidade de empatia com as crianças, culturalmente muito difícil para as
pessoas adultas, formatadas na ideia de que as crianças devem obediência aos
mais velhos, que detêm autoridade sobre elas. Temos de ter em conta que as
conceções dominantes na sociedade também se refletem entre os juízes que
aplicam o direito e os profissionais que coadjuvam esse processo de aplicação.
O primeiro passo da formação especializada devia ser a desconstrução dos
preconceitos que a sociedade tem em relação às mulheres e às crianças. Foram as
protagonistas da Reforma de 1977, que reconheceu, pela primeira vez na história
do direito, um estatuto jurídico de igualdade às mulheres e direitos de
participação às crianças e aos jovens, mas o espírito desta Reforma ainda não
foi posto em prática. A alteração de mentalidades é sempre um processo muito
mais lento do que as alterações legislativas. A constituição de advogado nos
processos desta natureza é essencial? O RGPTC veio introduzir a obrigatoriedade
de constituição de advogado/a para a criança, nos processos em que haja
conflitos de interesses entre a criança e os pais ou quando a criança, dotada
de maturidade suficiente, o requeira, o que pode suceder nos processos de
regulação do exercício das responsabilidades parentais. A jurisprudência tem
tido uma visão restritiva da figura, entendendo que a nomeação de advogado para
a criança não é devida quando o interesse que a criança manifesta coincide com
a posição assumida por um dos progenitores em conflito com o outro. Penso que
para tornar esta figura do advogado da criança uma mais-valia, será necessário
que a Ordem dos Advogados disponha de uma bolsa de advogados com formação
especializada, caso contrário, corremos o risco que seja mais do mesmo: direito
da família com ideias pré-concebidas… O incumprimento das responsabilidades
parentais, designadamente de alimentos ou de visitas, tem, na prática,
consequências relevantes para os incumpridores? Ou, pelo contrário, assiste-se
a um sentimento geral de impunidade, qualquer que seja o grau ou intensidade do
incumprimento? Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o incumprimento do
regime de visitas e o incumprimento de alimentos se referem a realidades muito
distintas e que não podem ser tratadas do mesmo modo: o convívio entre a
criança e o progenitor não residente é uma realidade afetiva e relacional,
dependendo a sua execução prática da vontade das pessoas envolvidas: as
relações pessoais e afetivas não podem ser impostas pela força nem aos
Tribunais compete impor afetos; o direito a alimentos, pelo contrário, é uma
obrigação dos pais e um direito fundamental das crianças, que decorre do seu
direito à vida e à integridade pessoal e que, por isso, tem como único limite a
incapacidade financeira de o progenitor obrigado os prestar, não podendo o seu
cumprimento ficar dependente da vontade deste, nem podendo o progenitor
residente renunciar a estes alimentos. Quanto ao incumprimento das visitas e
dos alimentos, a lei prevê sanções para os incumpridores: o progenitor que
injustificadamente impede as visitas do outro progenitor aos filhos pode ser
condenado ao pagamento de multas, indemnizações e até responder criminalmente
por crime de subtração de menores; o progenitor que não paga a pensão de
alimentos a que está obrigado pode ver os seus rendimentos ou bens serem
penhorados e o valor da pensão deduzido Penso que o Direito da Família e das
Crianças é uma área do Direito altamente permeável às conceções pessoais, ideologias
e idiossincrasias de quem decide e em que a neutralidade na visão dos casos
está muito condicionada pela experiência e opiniões de cada magistrado ou
magistrada. Por isso, é essencial a formação especializada do seu salário, pela
entidade empregadora, sob requisição do tribunal dirigida à entidade
empregadora. O devedor pode ainda incorrer em responsabilidade criminal por
violação da obrigação de alimentos. Em relação aos alimentos, penso que os processos
de execução contra os incumpridores se fazem, mas o problema está a montante:
as crianças ficam longos períodos de tempo sem receberem alimentos ou a
receberem pensões de valor muito baixo, dada a relutância que os tribunais têm
em decretar alimentos provisórios e os montantes muito reduzidos,
manifestamente insuficientes, dessas pensões. Havendo ainda que contar com as
demoras do processo de incumprimento e do processo em que o MP aciona a
intervenção do Fundo de Garantia da Pensão de Alimentos, para se substituir ao
devedor. Em relação às visitas, a percentagem de processos de incumprimento é
elevada e tem-se caído num exagero de condenações de mães sem demonstração de
culpa destas e mesmo quando os filhos já são adolescentes quase maiores de idade,
entre os 15 e os 17 anos. Discordo destes processos de incumprimento porque as
crianças são pessoas, não objetos sobre os quais os adultos têm direitos. A
exposição da criança a conflitos e disputas de adultos poderá ter algumas
consequências para a vida e o dia a dia dessa criança? Os estudos demostram que
os conflitos entre os pais prejudicam a estabilidade psicológica da criança e
criam angústia e depressão, prejudicando o seu sucesso escolar e a sua saúde.
Acha que a solução para o conflito está na proposta de uma guarda partilhada
entre o pai e mãe que permita às crianças o convívio com ambos em termos de
igualdade? A guarda partilhada é uma figura que só funciona em prol dos
interesses das crianças quando há acordo entre ambos os pais e se estes têm capacidade
de cooperação para tomar decisões em conjunto e para comunicarem entre si sobre
os problemas dos filhos, se cada um deles confia no outro como pai ou como mãe,
e se ambos têm capacidade para educar os filhos e estar atentos às suas
necessidades no quotidiano. Mas estes fatores são apenas aqueles que dizem
respeito aos pais. É essencial que a criança seja ouvida sobre esta forma de
organização de vida, pois bem pode acontecer que, tendo de viver em residência
alternada, tal solução não seja do seu agrado e seja até prejudicial ao seu
equilíbrio. Para crianças com menos de 4 anos de idade a solução não é
adequada, pois enfraquece a sua vinculação à mãe em idades muito precoces, em
que uma vinculação contínua, sem interrupções, com uma pessoa adulta que cuide
si no quotidiano é o fator decisivo para que a criança ultrapasse com sucesso
as várias etapas do seu desenvolvimento. Na prática, os bebés a viver em regime
de alternância com ambos os pais não terão uma vinculação segura com nenhum
deles. Estas conclusões são da teoria da vinculação de John Bowlby e Mary
Ainsworth e nunca foram desmentidas até hoje pelos estudos que se seguiram. A
guarda alternada é uma solução salomónica que o sistema judicial usa, em todo o
mundo ocidental, para resolver conflitos e não ter de decidir a qual dos pais
confia a guarda da criança. Os estudos que apresentam resultados positivos
reportam-se a pais que estavam de acordo na aplicação da partilha da guarda.
Quando se isolam os casos de conflito, verifica-se que a angústia das crianças
aumenta nos casos de residência alternada. A guarda partilhada é uma figura que
só funciona em prol dos interesses das crianças quando há acordo entre ambos os
pais e se estes têm capacidade de cooperação para tomar decisões em conjunto e para
comunicarem entre si. Tem-se mostrado contra a tese da Síndrome de Alienação
Parental, tendo inclusive uma obra publicada sobre o assunto (“Uma análise
crítica da síndrome de alienação parental e os riscos da sua utilização nos
tribunais de família”). Havendo opiniões divergentes no campo judiciário sobre
esta matéria, não existem consequências negativas que afetem as decisões
judiciais? A tese da Síndrome de Alienação Parental (SAP) não foi aceite como
científica nem pela psicologia nem pela psiquiatria, daí que não possa ser
usada pelo Direito nem pelos Tribunais, contrariamente ao que tem sucedido, em
que por aplicação desta malfadada tese têm sido entregues crianças a
progenitores acusados de abuso sexual na pendência de processos crimes ou
depois de terem sido arquivados por insuficiência de prova. É trágica esta
situação para as crianças. Pois sabemos que o abuso sexual é um fenómeno
subidentificado, que não deixa marcas físicas detetáveis nos exames de medicina
legal, havendo como única prova o testemunho de uma criança, que pode ser muito
pequena, com 3-4 anos de idade. Ora, esta tese da SAP, presumindo que as
acusações de abuso sexual de crianças feitas no momento do divórcio ou em
processos de guarda são falsas, desprotege completamente as crianças porque
induz os tribunais a desvalorizar estas alegações, fazendo pender a convicção
do juiz para o lado do progenitor acusado e não para o direito das crianças à
proteção. Esta ligação da SAP à defesa dos interesses dos abusadores sexuais de
crianças remonta ao próprio criador, o médico psiquiatra Richard Gardner, que
fez a sua carreira profissional a defender, em tribunal, indivíduos acusados de
abuso sexual, tendo ele próprio escrito um livro, em 1992, em que defende que a
pedofilia é boa para a humanidade e que as crianças não sofrem, mas antes é a
sociedade que as faz sofrer. Quais os mecanismos que a Lei apresenta para
evitar que uma criança seja manipulada por um ou ambos os pais e de que forma são
aplicados na prática? A ideia de que as crianças e os jovens são manipulados
pelos pais em disputas de guarda ou de visitas é muito empolada. Temos que
contar, para interpretar as situações em que a criança recusa conviver com um
dos pais, com várias hipóteses, que nada têm a ver com manipulação: há jovens
que por rebeldia recusam conviver com o pai depois do divórcio; crianças que
tendem a unir-se ao progenitor que veem como o mais frágil, recusando o outro,
que culpam pelo divórcio; crianças em que a rejeição de um dos pais surge como
uma forma de adaptação à dor que lhes causa a separação dos pais; crianças que
rejeitam um dos pais porque o viram agredir a mãe, em situações de violência
doméstica. É essencial nesta matéria, em vez de presumir a manipulação, ouvir a
criança e perceber os motivos que tem para esta rejeição. As crianças são
pessoas e a ninguém pode ser imposta a liberdade de amar ou de não amar. Se o
obstáculo à relação com o pai puder ser ultrapassado, é através de apoio
psicológico à criança, com empatia e sensibilidade, que isso tem de ser feito,
e investindo na capacidade parental do progenitor rejeitado, não perseguindo e
punindo o progenitor que tem a guarda, nem coagindo a criança, executando o
regime de visitas com intervenção policial. Qual o papel da audição das
crianças no processo de regulação parental? E em outros casos mais graves, como
de abusos sexuais? A audição das crianças foi muito valorizada pelo RGPTC, que
estabeleceu o princípio da audição obrigatória da criança sem requisitos de
idade, mas apenas de maturidade e capacidade de compreensão. O RGPTC
estabeleceu também um conjunto de princípios, em transposição da Diretiva
2011/92/UE, para a audição da criança vítima de abuso sexual, afirmando
expressamente uma solução cuja necessidade se fazia sentir na prática
judiciária: a audição para A tese da Síndrome de Alienação Parental não foi
aceite como científica nem pela psicologia nem pela psiquiatria, daí que não
possa ser usada pelo Direito nem pelos Tribunais, contrariamente ao que tem
sucedido memória futura nos processos crime de abuso sexual de crianças pode
ser utilizada como meio de prova no processo tutelar cível em que se discute a
guarda da criança. A investigação científica demonstra que a partir dos 3-4
anos de idade uma criança tem capacidade de discernimento para relatar os
factos que integram um crime de abuso sexual de crianças, devendo ser ouvida
uma única vez por profissionais altamente especializados, solução que não está
ainda posta em prática em Portugal, pois as crianças são ouvidas várias vezes e
a audição para memória futura, longe de respeitar o princípio legal da
precocidade, faz-se tardiamente conforme ilustram as estatísticas da Associação
Portuguesa de Apoio à Vítima. Com a aplicação do “novo” regime tem-se
implementado tal audição? Com que resultados práticos? Antes da entrada em
vigor do RGPTC, a implementação da audição da criança variava de Tribunal para
Tribunal. Havia tribunais em que a criança era ouvida e outros em que essa
audição tinha uma natureza excecional. Com a nova lei, passa a ser obrigatória,
só podendo ser dispensada nos casos em que se demonstre que a criança não tem
maturidade ou que a audição se revela danosa psicologicamente para a criança.
Não tenho muitas expetativas nos resultados práticos destas audições, pois a
maior parte dos juízes não tem experiência nem formação para entrevistar
crianças, correndo-se o risco de a criança, diante de uma figura de autoridade,
dizer o que pensa que o juiz quer ouvir e não aquilo que ela realmente sente.
Julgo ser decisivo que estas audições sejam acompanhadas por um profissional de
psicologia da confiança da criança, e que possam mesmo ser estes profissionais
a interrogar as crianças ou, pelo menos, a formular as perguntas. Discordo,
como é prá- tica nalguns tribunais, que o juiz possa ouvir a criança sem a
presença dos advogados dos pais e sem gravação da audição. É que esta solução
põe em causa o princípio do contraditório e potencia que interpretações
subjetivas do juiz acerca do que relata a criança possam contribuir para a
decisão, sem que tal fique registado nos fundamentos da mesma nem possa ser
controlado em sede de recurso. Considerando a existência, com frequência, de
ambientes altamente conflituosos e litigantes por parte dos progenitores, será,
em geral, possível chegar a um acordo entre os pais? Tal resolve mesmo os
conflitos e tem efeitos sobre o processo? Na maior parte dos casos, os casais
divorciam-se por mútuo consentimento e apresentam um acordo sobre regulação do
exercício das responsabilidades parentais, seguindo os formulários fornecidos
pelas conservatórias do registo civil ou adotando um acordo tipo elaborado por
advogados. A existência de um acordo inicial não garante que não haja conflitos
no futuro, que ocorrem, sobretudo, em relação às visitas e aos alimentos, sendo
geralmente consensual nas famílias que as crianças ficam melhor a viver com a
mãe por ser esta a solução que mantém a estabilidade na vida da criança e por
corresponder à divisão de tarefas adotada pelos pais na constância do
casamento. As situações de litígio em relação à guarda das crianças são raras,
mas têm vindo a aumentar com o aumento dos divórcios. Os casos mais
conflituosos, que duram em média 5-6 anos em tribunal, são aqueles em que
existe um processo-crime de abuso sexual de crianças ou de violência doméstica
contra um dos progenitores, em que as crianças são torturadas com experiências
de guarda partilhada ou de visitas assistidas pela segurança social, tudo com o
objetivo de não excluir o Discordo, como é prática nalguns tribunais, que o
juiz possa ouvir a criança sem a presença dos advogados dos pais e sem gravação
da audição. É que esta solução põe em causa o princípio do contraditório 12 | ENTREVISTA
março/abril | 2018 | VIDA JUDICIÁRIA pai da vida das crianças, nem que se tenha
que sujeitar estas, como já vi num processo, a mais de oitenta sessões de
visitas assistidas. Nestes casos, também se tentava que os pais chegassem a um
acordo, mas com o RGPTC devem acabar essas tentativas de acordo, pois a lei
especifica expressamente que, nas situações de violência doméstica ou abuso
sexual, as vítimas não podem estar sujeitas à mediação familiar ou a qualquer
tentativa de acordo com o agressor. Os crimes violentos constituem violações
graves dos direitos fundamentais das mulheres e das crianças – a maioria das
vítimas – e as mulheres, nestas situações, não estão em condições de igualdade
com o agressor para poderem chegar a acordos. O objetivo do sistema judicial,
nestes casos, não deve ser proteger a relação da criança com um pai agressor ou
suspeito de abusar sexualmente dos filhos, mas sim proteger as crianças do
perigo em que se encontram. Parece óbvio, mas não está ainda assimilado pelo
sistema que tem um cariz ainda patriarcal. A postura adequada dos Advogados dos
dois progenitores passa pela tentativa de acordo ou de mediação? Nas situações
em que não há violência doméstica nem suspeita de crime violento contra as
crianças, deve tentar-se o acordo e os advogados têm um papel importante em
criar nos pais uma predisposição para o consenso, podendo solicitar o auxílio
da mediação familiar, serviços que o próprio tribunal pode oficiosamente
sugerir aos pais, suspendendo o processo para o efeito. Já escreveu vários
livros ligados ao Direito da Família e das Crianças e foi juíza social no
Tribunal de Família e Menores do Porto. Tendo em conta a sua larga experiência
neste campo, como avalia a atuação das instituições judiciárias portuguesas,
assim como dos vários operadores, neste campo, em comparação com outros países
europeus ou lusófonos? Considero que os problemas são os mesmos em todos os
países europeus e lusófonos, e dizem respeito ao facto de o sistema judicial
dar prevalência à relação da criança com ambos os pais - a chamada ideologia da
coparentalidade - sobre a necessidade de proteção das crianças em casos de
violência doméstica. O aumento do número de divórcios e a visibilidade da
violência doméstica (que corresponde, segundo estudos norte-americanos cujos
resultados são transponíveis para os países lusófonos e europeus, a cerca de
70% da litigância em torno de guarda de crianças) criaram necessidades novas
nos tribunais de família que devem decidir-se de acordo com o paradigma da
proteção da criança e não de acordo com a crença popular de que o interesse da
criança passa sempre pela manutenção da relação da criança com ambos os pais. A
Convenção do Conselho da Europa (designada por Convenção de IstamConsidero que
os problemas são os mesmos em todos os países europeus e lusófonos, e dizem
respeito ao facto de o sistema judicial dar prevalência à relação da criança
com ambos os pais bul), ratificada pelo Estado português em 2013, veio chamar a
atenção para esta questão. As sociedades antigamente idealizavam o casamento.
Agora que o número de divórcios fez desaparecer essa crença, idealizam os
divórcios e tratam a violência doméstica como um mero conflito... É este
paradigma que é preciso alterar para que as crianças não sejam torturadas em
processos que duram anos e em que se tenta reatar a relação com um progenitor
que a agrediu ou agrediu a sua mãe. Esse panorama é com certeza ignorado pelos
cidadãos que não têm contacto com o sistema judicial e pelo poder político. Mas
é a dolorosa realidade das crianças que tiveram o azar de nascer em famílias
com histórias de violência doméstica. Considera que os Direitos das Crianças
sejam uma prioridade em Portugal? Acho que deviam ser uma prioridade, mas na
prática não são. As crianças não têm voz no espaço social e político, e não
votam. Vivemos numa cultura adultocêntrica. Por isso, os pontos de vista e
interesses das crianças são ignorados na elaboração das leis e das políticas
sociais, e as crianças são tratadas, pelos tribunais, como objetos dos direitos
dos adultos e não como sujeitos de direitos. Neste campo do Direito da Família,
Crianças e Jovens, o que é que Portugal tem a aprender com a atuação dos vários
operadores judiciais de outros países lusófonos? O que mais poderia ser feito
neste campo da Lusofonia? A constitucionalização do direito da família, nos
países lusófonos, conduziu à adoção dos mesmos princípios de igualdade de
género e de promoção dos direitos das crianças que caraterizam o direito da
família português após a Constituição de 1976. Contudo, as regras costumeiras,
de natureza patriarcal, continuam a ser aplicadas e as mulheres a viver num
estatuto de subordinação, com altas taxas de violência doméstica, de casos de
não reconhecimento da paternidade e de incumprimento da pensão de alimentos, o
que acentua a pobreza das mulheres e das crianças. Por outro lado, os países
africanos, de língua portuguesa, ainda não legalizaram as uniões e os
casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Participei recentemente sobre a
discussão deste tema em Cabo Verde. O Brasil é o país cuja realidade conheço
melhor. E posso afirmar que nalguns aspetos o direito brasileiro está mais
avançado do que o português, por exemplo, na tutela judicial da parentalidade
sócio-afetiva, no reconhecimento da multiparentalidade, nos efeitos das uniões
estáveis, na atribuição judicial de direitos de indemnização aos filhos, contra
os pais, por abandono afectivo, nos direitos das pessoas transexuais e
transgénero. O Direito da Família brasileiro evolui pela criatividade da
jurisprudência, enquanto Portugal evolui através da lei. Contudo, é também no
Brasil que a tese da alienação parental tem tido mais força no judiciário,
invalidando as declarações de crianças vítimas de abuso sexual e desprotegendo
crianças negligenciadas ou maltratadas por um dos pais. A situação tende a
agravar-se com a apresentação de um projeto lei que visa criminalizar a
alienação parental, prevendo expressamente que os familiares da criança que acusem
um pai de abuso sexual e os profissionais que apoiam a criança possam ser
punidos em caso de falsas declarações. Ora, sabendo nós, pela investigação
científica, que pode ser muito difícil reunir prova nestes casos, sobretudo
quando a criança é muito pequena, esta ameaça sobre as famílias e sobre os
profissionais induz as famílias ao silêncio, o que significa um retrocesso nos
direitos das crianças.
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